Sunday, February 23, 2014

A vidente


A vidente


Aquele pobre homem estava na pior. Cheio de dívidas, cheio de problemas. O destino não estava dando folga, nem um pouquinho.Tinha chegado ao ponto de não ter nada o que comer, ele que já tinha tido uma vida até boa. 
Achou, por acaso, alguns reais no bolso de um paletó que tinha resolvido vender, já que era de fina costura e podia render alguns trocados. Ele até se lembrou de quando pôs aquele dinheiro lá. Nem valia a pena relembrar, eram  bons tempos, não queria ficar se chateando ainda mais com  essas coisas. Enfiou a grana no bolso e resolveu que ia fazer um almoço decente. Coisa simples, mas boa, pois fazia um bom tempo que não via nome de restaurante nem em lista telefônica.
Lá vai ele pela rua, quase se esquecendo de como era preta a sua situação. Olha de um lado,olha de outro, saboreando, pelo menos por alguns minutos, a paisagem. De repente vê a placa de uma vidente. Lá dizia que você precisa “conhecer seu passado para determinar seu futuro”. Passou pela sua cabeça, “quem sabe?”. Aquilo poderia ser uma reviravolta em sua vida, agora que tanto precisava.
Claro que não, além de ser uma besteira, estava com uma fome desgraçada. E continuou andando. “Pessoas de sucesso vestem Lemans”, dizia um outdoor logo na frente. E não era que aquele paletó, onde tinha acabado de achar o dinheiro era dessa marca, que ele até pensou não mais existir? Parecia um sinal. Dinheiro no bolso do paletó Lemans, vidente, pessoa de sucesso, Lemans...Voltou e decidiu falar com a vidente. Entrou, sentou-se. Lá de dentro, através de uma parede de vidro daquelas que só se vê de um lado, a mulher examinou seu novo, primeiro e único cliente do dia. Ela tinha muita prática em saber o que as pessoas estavam passando por dentro. Deu um tempo para fazer charme, depois foi até a recepção e mandou-o entrar.
A primeira coisa foi cobrar a consulta. Depois colocou o dinheiro numa caixinha de madeira. Pediu, então, que o cliente colocasse as mãos sobre a pequena mesa redonda. Tocou-as  ligeiramente com suas próprias mãos, como se precisasse desse contacto para ler seu passado e seu destino. Fechou os olhos e começou a sessão. Emitiu uns ruídos estranhos, fez algumas caretas, esboçou uns sorrisos, virou ligeiramente a cabeça para os lados e começou a falar:
-Vejo, em um passado distante...
E começou a enumerar todas as vidas passadas do pobre homem. Um samurai que foi punido por falta de lealdade, há muitos séculos atrás. Duas ou três vidas obscuras que ela não conseguia enxergar. Uma prostituta na França no começo do século dezenove, um escravo que foi executado porque tentou fugir três vezes, um servo num país islâmico que roubou e teve suas mãos amputadas pelo patrão. Essas eram algumas de suas vidas passadas. Ele queria, desesperadamente, que ela parasse. Aquilo era uma indignidade, ele não acreditava. Mas sabe como é o espírito humano, ele ficou impressionado. No final, ela explicou que tudo que havia acontecido nos últimos séculos era uma espécie de preparação, que agora sua vida estava para mudar, que o que estava passando tinha sido uma preparação, ele iria ganhar uma grande fortuna, abrir um grande negócio, tornar-se o homem mais rico da cidade. Ou por não acreditar nela, ou por estar muito deprimido, levantou-se e saiu. Na rua, pôs a mão no bolso e viu que tinha sobrado muito pouco dinheiro. Mal dava para um cachorro quente. Foi o que fez, comprou um. Sentou-se num banco da praça e comeu a seco pois o dinheiro não tinha sido suficiente para o refrigerante.
Enquanto comia – até que estava gostoso – não conseguia ver as lindas flores do canteiro, nem o sorriso das crianças que brincavam, nem o gingado da garota que passou. Na sua mente as imagens se confundiam. Uma prostituta com as mãos cortadas e  vestida de samurai  por exigência de algum cliente pervertido, jogada num canto escuro de uma rua de Paris. Certamente não acreditava naquele passado, muito menos num futuro milionário. Imagens, mesmo mentais, falam mais do que mil palavras, por isso elas ficavam dançando em sua mente. 
Por fim, terminou seu cachorro quente, pensou na vidente e falou um palavrão. Olhou bem para suas mãos, ficou feliz por elas ainda estarem no lugar e por ele ser apenas um desempregado do século vinte  e  um. Depois foi, resignado, curtir sua miséria na solidão do lar.

2 comments:

  1. muito bom post, videntes desempenhar um papel importante na sociedade. lembranças

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