A égua
de Troia, os motoqueiros, e o arlequim
Naquela manhã insuspeita, para surpresa dos transeuntes, lá
estava o estranho cavalo. Parado, calmo, bem na frente do fórum. Marcada a ferro, em letras maiúsculas, havia uma inscrição: TROIA. Para deixar as coisas ainda mais confusas, ele
tinha uma foto do Elvis Presley pendurada ao pescoço com a inscrição: “I love
Elvis”. Era demais para aquele povo simples, pacato. Muita esquisitice. Começou
a boataria.
O Sarmento, inteligentemente, dizia que a história do Elvis
e a inscrição TROIA não tinham importância nenhuma. Podia ser pura gozação de
alguém. Alguém que não gostava da cidade. Mas o fato de aquele animal ficar
ali, parado, isso sim era coisa de se pensar. Como podia, com aquela agitação
toda à sua volta, aquele falatório todo? O Reis concordava com ele mas tinha um
ângulo importante também: aquilo não era um cavalo, era uma égua. Alguns
argumentaram que isso não fazia diferença nenhuma. Foi aí que o velho Edmundo,
professor aposentado de História, meteu o bico. De certa forma, faz diferença
sim. Vocês não conhecem aquela lenda do cavalo de Troia? Que uma cidade mandou
de presente um enorme cavalo de madeira para a cidade rival, como prova de
harmonia, de paz? E, depois, tiveram a desagradável surpresa de saber que, na
barriga do cavalo, estavam os soldados inimigos escondidos para abrir os
portões à noite e permitir que seu exército entrasse? Não sabiam? Todo mundo
deveria saber dessa história. O famoso Cavalo de Troia. Agora, porém, que sabemos
ser uma égua, as coisas mudam de figura. O Constantino argumentou que isso não
mudava nada, as mulheres estavam por toda parte agora, até uma juíza havia ali
mesmo, bem na frente, no fórum. Imediatamente a Mercedes ficou ofendida, falou
um palavrão. Aqueles comentários eram um óbvio desrespeito à sua classe.
Ninguém falou nada, mas muitos pensaram que ali podia estar
a chave do mistério. Muita gente tinha achado um absurdo uma mulher ser nomeada
juíza. Não podia ser que...
Por falar nisso, diante dessa confusão, os juízes e
magistrados estavam todos entrando pelas portas laterais. Não ficava bem para
eles passar ali no meio do povão, e ainda por cima, ter aquela égua sem
respeito ofuscando a paisagem da justiça. Os advogados, esses não ligavam. Ao
contrário, faziam questão de passar por ali, bem ao lado da “égua de Troia”.
Distribuíam cartões de visita. Quem sabe, alguém resolvesse processar a
prefeitura ou até mesmo o proprietário do animal? Uma desfaçatez, caso típico
de danos morais.
O chefe dos juízes tinha já mandado uma ordem para o
delegado: remover a intrusa das instalações imediatamente. Até o final do dia a
ordem não tinha sido cumprida. Ele procrastinou. Homem supersticioso, achou que
ali tinha alguma coisa, era melhor não provocar. Fingiu que não recebeu o
comunicado. Ao cair da noite, as pessoas começaram a sumir da praça. Ao
contrário do que se possa pensar, não tinham perdido o interesse, não. O que
aconteceu, foi outra coisa. O enfermeiro do posto de Saúde, ao ouvir a história
do Cavalo de Troia, espalhou que a história podia ser verdadeira. Não,
entretanto, do jeito que o povo pensava. Dentro da barriga do equíneo podiam
estar bactérias ou até vírus fatais. Uma doença grave se espalharia e poderia
dizimar a população. Não se sabe se era o fator psicológico ou não, mas muita
gente passou mal à noite.
No dia seguinte, a égua não estava mais lá. Sumira dentro
da noite sem deixar rastros. A Prefeitura, eficientemente, providenciou a
limpeza do espaço. O assunto continuou forte durante os dias seguintes e depois
foi, aos poucos, desvanecendo. Depois de uma semana, pouca gente falava sobre o
tópico. Provavelmente foi obra de um gozador, alguns desses rapazes da nova
geração, sem muito escrúpulo. Ainda assim, era um mistério o fato de o bicho
não sair do mesmo ponto o tempo todo.
A paz tinha voltado, mas não durou muito tempo. Um dia,
assim do nada, começou a passar pela rua principal, um daqueles motoqueiros de
gangue. Roupa de couro, argolas nas orelhas, cheio de tatuagens. Uma barba
branca, cara de mau. Parecia estar sozinho, mas não estava. Depois que ele
desapareceu do outro lado, um grupo enorme de motoqueiros iguais a ele invadiu
a cidade. Mas não vandalizaram. Calmos, foram fazendo sua procissão, sem
bagunça, sem tumulto. Por prevenção, todos tinham se recolhido em suas casas ou
nos estabelecimentos. Calculou-se que, pelo menos quatrocentas motocicletas
passaram por ali. Nunca, nada do gênero havia ocorrido no local. Mal a poeira
havia se assentado, uma mulher, toda tatuada também, de longos cabelos loiros,
veio dirigindo uma enorme moto, toda prateada. Igualmente, após ela, um bando
enorme, todas muito parecidas, também passou.
O comentário mais comum que se ouvia era de que alguém
estava querendo se vingar da cidade. Cada um se lembrava de um possível
candidato. Alguém que sofreu injustiça, um marido traído, alguém que foi
injustiçado política ou criminalmente, qualquer coisa assim. O Tonico comentou
que o fulano tinha de ter muita raiva. Imaginem, organizar tudo aquilo, envolvendo
quase mil pessoas! Além do ódio, muito dinheiro, muita imaginação. Não, não
podia ser.
Quase um mês se passou e mais nada aconteceu. As pessoas
estavam começando a ficar aliviadas, começando a deixar as lembranças para
trás. É assim com as pessoas, é assim com as comunidades. O perigo passa, a
gente se esquece das coisas.
Era um domingo, os católicos já tinham ido à missa e os
crentes já tinham participado do culto. Os mais mundanos bebiam cerveja nos
bares e, quem podia, fazia compras na Rua Principal. Falavam de tudo, menos da
égua e dos motoqueiros. Foi aí, então que a coisa mais doida aconteceu. A
meninada veio gritando na frente. Falavam que a égua de Troia tinha voltado.
Foi um susto. Justo agora que o assunto tinha morrido. A surpresa, porém, era
maior ainda. Logo a seguir, veio o chefe do bando de motoqueiros, mas sem a
tropa toda a atrás. Depois a chefe das
motoqueiras, também sem sua turma. Uma espécie de resumo de tudo que tinha
acontecido antes. A única diferença, porém, era que, depois de todos, vinha um
arlequim, dançando e cantando. E, ainda por cima, tocava um cavaquinho. Como
conseguia fazer tudo isto ao mesmo tempo, não se sabe. E o mais incrível ainda,
era que ele estava tocando um chorinho, bem ligeiro, bem rápido: o
Brasileirinho. Estavam todos perplexos. Entretanto, foram tomados pela magia da
música e começaram a dançar. E dançaram, dançaram. Algum tempo depois, todos
foram sumindo no horizonte, mas algumas pessoas, excitadas, continuaram a
dançar.
Os habitantes e as autoridades achavam que mais alguma
coisa ia acontecer, mas nunca mais houve qualquer coisa na pacata cidade.
Continuou com seu tédio anterior, sem “happenings”, sem nada. Um bom tempo se
passou e as pessoas começaram a reviver o assunto, talvez para sair da
monotonia. Deu uma espécie de saudades dos acontecimentos. Aquele lugar era um
aborrecimento interminável. Foi aí que o
partido da oposição começou a cobrar da situação uma tomada de posição. Onde se
viu, depois de tudo que aconteceu, ninguém fazer nada, não ir atrás.
O prefeito formou uma comissão, marcou uma reunião com a
Secretaria de Segurança e depois com o vice-governador. Encheram-se de
importância, de roupas novas e foram para a capital. A primeira reunião foi um
desastre. O Secretário mandou um assistente – secretário do secretário – ouvir
as reclamações, os relatos. No meio da narrativa, o indivíduo começou a rir. Um
riso incontrolável. Mal conseguia falar. Achava a história engraçadíssima.
Apesar de ser uma tremenda falta de respeito com a comitiva, não conseguia se
controlar. As autoridades da cidade ficaram muito ofendidas. Para tentar
remediar a situação, ele perguntou se eles tinham tirado fotos. Perguntou isso
dando gargalhadas, não conseguia segurar.
No outro dia, desolados com tanta humilhação, foram para o
encontro com o vice, dispostos a se vingar do secretário de segurança. Para surpresa
deles, o vice-governador mandou um subalterno, de bem baixo escalão, para a
reunião. E não é que o desgraçado também não conseguia parar de dar gargalhadas
durante o relato? Um assunto tão sério para o município e eles zombando?
Levantaram-se antes do término do encontro e dirigiram-se para a porta de
saída, não antes de ouvir a pergunta, entremeada de risos: Tinham tirado alguma
foto?
De volta na cidade, espalharam que as autoridades estavam
investigando o assunto, que, aliás, estava sendo considerado de segurança
nacional. Muitas pessoas desconfiaram que era mentira. O fiasco estava
estampado na cara deles. Ao mesmo tempo, solicitaram publicamente, que, quem
quer que tivesse alguma foto dos eventos, deveria trazê-la para o escritório do
prefeito.
Era incrível, com tantos celulares por ali, não havia uma
foto sequer dos estranhos acontecimentos. Como podia? Um espírito de porco
citou nos bares da cidade a velha propaganda: Fotografou? Não? Então dançou. E
ria, ria, como os políticos da capital.
O inquérito nunca foi levado a cabo, obviamente. Também
nunca mais ninguém falou da égua de Troia, dos motoqueiros ou do arlequim. Eles
tinham agora um mistério muito maior para resolver. Por que e como, ninguém, ninguém mesmo, tirou
uma só foto dos eventos? Essa pergunta foi feita incontáveis vezes por todos.
Ninguém tinha resposta, nunca teve. Um dia, todos pararam de falar no assunto.
Finalmente a coisa toda acabou no esquecimento.
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