A passagem: uma história em círculos
Às vezes nos deparamos com um pneu furado bem no meio da estrada. Raramente acontece de termos dois ao mesmo tempo. Mas três? É quase impossível. Pois bem, era o que estava acontecendo com o Sávio. Por isso, ele estava pensando como era estranha aquela situação. O seu fusca estava com os quatro praticamente novos, e isso tornava as coisas mais esquisitas ainda. Mas isso não era nada perto do que estava para vir.
Largou o carro na beirada da pista que ia de Franco da Rocha para Campo Limpo e ficou esperando por ajuda. Passou meia hora e nem um carro sequer apareceu. Raciocinou um pouco e fez o que era lógico. Trocou um dos pneus, e tirou as outras duas rodas, colocando um pedaço de tronco de árvore e dois blocos de cimento que havia achado nas redondezas para sustentar o carro. Agora só precisava de uma alma boa que se dispusesse a dar carona para ele e duas rodas. Depois de mais de uma hora, desistiu, começou a andar. Não sabia exatamente onde estava, mas certamente o asfalto ia até Campo Limpo. Que demorasse, não fazia mal. Lá ele daria um jeito de voltar com ajuda. Ia ser um transtorno, todos seus planos seriam cancelados naquele dia. Ficaria satisfeito se pelo menos resolvesse o problema do seu fusca. Era um carro bom, mas esse é o tipo de coisa que mesmo um bom veículo tem de enfrentar, às vezes. Talvez alguém tivesse espalhado pregos na estrada, em algum determinado lugar, por pura maldade. Isso explicaria, de certa forma, o mistério.
Continuou andando. Depois de quase duas horas, sem se deparar com nada, além das árvores que ladeavam a estrada, finalmente notou algo diferente lá na frente. Não tinha certeza. Ou era uma estrada de terra que começava bem onde a pista fazia uma curva acentuada, ou simplesmente o asfalto terminava ali. Não podia ser. Ele conhecia a região. Tinha passado ali inúmeras vezes.
Apressou o passo, agitado. Mais do que isso, estava assustado. Já estava esbaforido quando seus piores temores se confirmaram. Era o fim da pista. Dali para a frente, só terra. Voltar? Não aguentaria, nem se quisesse. O que tinha acontecido? Tinha seguido por engano um outro caminho? Teria se distraído? Impossível! O que quer que fosse que estivesse acontecendo, parecia mais um daqueles filmes de suspense aos quais gostava de assistir do que qualquer outra coisa. Ali, porém, não havia graça nenhuma.
Se havia um caminho, deveria levar a um lugar, pensou. Era bem verdade que esse tipo de lógica não estava funcionando muito bem nas últimas horas. Sávio tentava se controlar, tentava achar uma explicação. Repetia para si mesmo que, no final, tudo acabaria se esclarecendo. Não fora sempre assim em sua vida? Tinha passado por muitas coisas estranhas e tudo acabava dando certo. Não estava gostando, porém, de como a situação estava mudando. Tudo muito rápido. Além das copas das árvores cobrirem praticamente toda a vista, o sol havia desaparecido e podia se ver, através da fina tira de céu, que as nuvens estavam escuras, mais do que o normal. Ao mesmo tempo, já tinha andado bastante na nova pista e não havia nem construções, nem pessoas, nem animais. Como uma manhã tão bonita como aquela, podia ter se transformado assim? Era para ser um dia normal. A essa altura já teria feito o que tinha vindo fazer em Campo Limpo e estaria quase chegando de volta a sua casa. Era só pegar um resto do churrasco que tinha feito no dia anterior, um pouco da farofa que havia sobrado, esquentar tudo, sentar-se à frente da televisão e se deliciar com um bom filme. Provavelmente haveria um bem interessante para se ver na programação. Do jeito que as coisas estavam, porém, ele ia ser o personagem de algum outro estranho enredo. Não tinha trazido celular, mas se tivesse, não adiantaria. Tinha certeza de que não funcionaria ali.
Estava com as pernas doendo, estava muito cansado. Sentou-se na beirada, recostou-se a uma árvore e suspirou fundo. Aquele escuro... Seria por causa das nuvens ou a noite estaria chegando? Tinha acabado de se lembrar de que, quando estava trocando o pneu, havia tirado o relógio e colocado sobre o painel do carro. Agora nem poderia saber as horas.
Chegou a adormecer por alguns minutos. Subitamente sentiu algo estranho e abriu os olhos. Viu, diante de si, um homem em pé, encarando-o. Levantou-se rapidamente e perguntou quem ele era. Ele respondeu que era Hedef. Sávio não se conteve e começou a fazer perguntas. O homem fez sinal que parasse. Indicou, com gestos, que não conseguia entender o que ele estava dizendo. Depois falou umas frases em uma língua muito estranha que, definitivamente, Sávio não conhecia. Tinha certeza de que não era nenhuma das mais comuns. Sávio era bom nisso, jamais se enganaria. Só então prestou atenção na figura. Ele parecia ter mais de oitenta anos. Usava, estranhamente uma camisa social, branca, que não combinava com as calças – mais propriamente um pijama – seguras pela cintura por uma espécie de barbante. Nos pés, um chinelo de dedos. Tinha barba e cabelos desarranjados, ambos grisalhos. Certamente o que era mais estranho em todo seu aspecto, era aquela camisa branca, limpa, em contraste com todo o resto.
O ancião fez sinal para que ele o seguisse. Continuava a murmurar naquela estranha linguagem. Andaram cerca de um quilômetro até um ponto onde a estrada de terra fazia uma curva. Podia se ver, um pouco antes, uma espécie de casebre, à direita. O homem apontou o local para Sávio. Em seguida, fez com as duas mãos, um sinal de que deveria dormir lá. Sem comentar mais nada, virou-se e começou a voltar. Sálvio ainda tentou obter mais informações, mas foi inútil. Ele nem sequer voltou seu rosto para trás.
Era como se ele já soubesse da chegada do Sávio desde o início.
Ele apertou os passos, porém estava inseguro. Não tinha certeza se iria aceitar a sugestão do homem de dormir num lugar estranho. Quando já estava bem perto, porém, sentiu num cansaço tão grande, que admitiu para si mesmo, que não tinha alternativa.
A porta rangeu um pouco quando ele a abriu. A cabana tinha apenas um compartimento. Nele havia uma cama arrumada com lençóis limpos e um cobertor xadrez cuidadosamente dobrado. Num criado-mudo ao lado, estava uma jarra de vidro transparente com água e um copo sobre um pires. Numa pequena bandeja, alguns biscoitos feitos em casa. Apesar da estranheza da situação e de toda sua preocupação, Sávio estava sentindo um sono fora do normal. Tirou os sapatos, bebeu um copo de água e deitou-se, pensando em descansar um pouco e depois examinar os arredores. Antes de adormecer, teve certeza de que tudo ali estava programado. Aquela cabana, naquele lugar, tudo arrumadinho. Alguém estava esperando por ele, alguém o conduziu, contra sua vontade, para aquele lugar. Foi só o que pensou. Dormiu profundamente.
Uma comunidade diferente
Acordou de madrugada. Por um breve segundo, pensou estar em casa, em sua cama. Logo a seguir, porém, a dura realidade se fez presente. Abriu os olhos e pôde ver, apesar de muito escuro, a porta entreaberta da cabana. Levantou-se e caminhou até a saída. O chão, de terra batida, estava muito frio. Saiu, olhou para o céu negro, sem lua ou estrelas. Notou, porém, que do lado de trás da “casa” onde estava, ao longe, havia uma luz pálida que se refletia na névoa que estava no ar. Deveria haver gente ali, um pouco de civilização. Pegou um graveto depois de apalpar o chão com os dedos, foi até o meio da estrada de terra e desenhou uma seta apontando para o lugar. De manhã, quando o sol estivesse brilhando, saberia em que direção seguir para achar o lugar. Voltou para a cama e tentou dormir novamente. Só conseguiu depois de um bom tempo. Sua cabeça doía com tanta preocupação. Seus pés, também. Estavam muito doloridos. Estava sentindo, agora, os efeitos da longa caminhada.
Assim que percebeu as primeiras luzes da manhã, Sávio levantou-se. Viu que sobre o criado-mudo havia umas quatro ou cinco bananas. Ficou com raiva. Agora estava mais do que óbvio que alguém controlava a situação. Pensou em largar as frutas ali, mas estava com muita fome e comeu duas delas. Sentiu falta de um bom café. Assim que alcançou a estrada de terra, notou a seta que havia desenhado no chão. Era mais ou menos na direção da continuação da estrada. Isso facilitava as coisas, uma vez que não precisaria entrar pelo meio da mata. Os primeiros passos foram muito difíceis. A dor era muito forte. Assim que o corpo esquentou, entretanto, ficou mais fácil. A mata, dos dois lados, não tinha nada de especial. Era nativa da região, com certeza. Não havia nenhuma indicação de atividade humana. O próprio leito do caminho aparentava não ter movimento quase nenhum. Havia um silêncio até certo ponto incômodo. O ar estava parado. Aparentemente não havia animais por ali e nem sequer pássaros sobrevoavam o trecho por onde Sávio estava andando.
Depois de quase duas horas de caminhada, Sávio parou para descansar. Podia ter sido mais, podia ter sido menos. Estava sem relógio, sem celular. Aproveitou uma pequena elevação na beirada para sentar-se. Passou a mão pelos cabelos, pelo rosto, deu um suspiro fundo. Depois ficou em silêncio, tentanto escutar algum ruído. De início, nada ouvia, a não ser o próprio coração batendo. Depois de uns cinco minutos, entretanto, parecia que havia alguém cantando, muito baixo. Era uma mistura de assobio, de sussurro. Parecia, definitivamente coisa de gente, não de animal. Se fossem de humanos, aqueles sons, eram certamente algumas pessoas e não apenas uma. Caminhou para dentro do mato. Era uma vegetação densa, o que tornava o caminhar muito difícil. Não avançou mais de dez metros e parou. Apurou os ouvidos. Nada. Voltou um pouco e tentou novamente. Não havia mais som nenhum. De novo na pista, começou a andar na mesma direção. Depois de uns trinta metros, parou. Parecia que o som tinha voltado. Certamente era um grupo de pessoas cantando, assobiando. Era suave, era agradável. Depois de andar pelo menos mais uns dois quilômetros, ele tinha certeza. Havia uma espécie de coral, cantando, suavemente, no meio da floresta. Apertou o passo. Estava óbvio, agora, que conforme caminhava naquela direção, mais claro ficava o som. Por outro lado, mais misterioso também. Não era nada que se se pudesse descrever com palavras. Não havia referência, não havia nada com que pudesse ser comparado.
Sávio já havia caminhado mais de cinco quilômetros, quando percebeu que o “canto” estava diminuindo ao invés de aumentar. Teria passado do ponto? Começou a voltar. Não tinha andado mais de quinhentos metros quando percebeu, à sua esquerda, uma pequena trilha, quase escondida pelos arbustos. Estivera tão concentrado na sua busca que não a havia notado. Imediatamente começou a percorrê-la. Era cuidadosamente calçada com umas pedras arredondadas, pequenas, brancas. Fazia muitas curvas, contornando as árvores. A vegetação foi ficando cada vez menos densa. Por outro lado, as pequenas árvores passaram a dar espaço para outras maiores. No meio delas, praticamente não havia vegetação rasteira. A trilha passou a ser mais reta e era possível ver a paisagem na distância.
Levou um susto quando percebeu, ao longe, pessoas andando de um lado para o outro, em pequenos grupos, às vezes sozinhas. Eram altas, usavam túnicas de diversas cores. Ficou com receio, mas não tinha outra alternativa senão seguir. Foi o que fez.
Enquanto caminhava entre curioso e receoso, lembrou-se, por uma furtiva associação de ideias, de que deveria ter ido à casa de seu irmão, na noite passada, para ajudá-lo a preparar seu imposto de renda. Era o último dia, o Felício devia estar uma fera. Pior ainda, nessa mesma tarde deveria ir até o aeroporto esperar sua própria mulher. Nem dava para imaginar o que ela iria pensar quando percebesse que ele, definitivamente, não estava lá. Por outro lado, imaginou que não podia estar tão distante assim de sua casa, pelo tanto que tinha caminhado e pela direção em que tinha seguido. Sentia-se, entretanto, muito longe de sua cidade, como se estivesse em outro mundo, o que, de certa forma, era o que estava acontecendo. Estava absorto nesses pensamentos, quando percebeu que estava muito próximo de uma daquelas figuras. Vestia uma túnica vermelha, tinha cabelos curtos, era ligeiramente alto e seus olhos eram cinza. A cor da pele era de um bronzeado leve. Apesar do inusitado da situação, olhou bem fixo nos olhos do estranho, que sorriu. Nada disse, porém. Foi então que Sávio notou que aquele estranho “cantar assobiado” que tinha ouvido antes, estava bem forte agora. Pensou em perguntar algo, mas o estranho ser já estava andando em outra direção. Tentou se lembrar da figura para saber se era um homem ou uma mulher e, por mais surpreendente que pudesse parecer, não conseguia dizer. Algo mais o incomodava e demorou um pouco para perceber o que era até que, finalmente, descobriu. Quando o estranho ser olhou para ele, estava, na verdade, dizendo algo, sem mexer os lábios. Poderia jurar que estava se comunicando através do “canto” ou do assobio. Podia sentir que havia um significado naqueles sons. Talvez estivesse imaginando coisas. A essa altura, porém, nenhum fato o deixaria surpreso. Naquelas poucas horas tinha experimentado dez vezes mais do que em todo o resto de sua vida.
Já tinha passado por vários daqueles seres e tinha certeza. Quando eles olhavam e sorriam, na verdade estavam “conversando” com você. O estranho e doce canto ficava mais próximo e direcionado. Igualmente, estava certo de que era impossível dizer se eram homens ou mulheres. Embora tivessem diferentes feições, eles eram muito parecidos entre si. Não via, entretanto, como eles ou elas poderiam ajudá-los. Na verdade, eles acrescentavam mais nuances ao mistério. Estava agora numa área onde havia centenas deles, andando de um lado para outro, em grupos ou, às vezes, sozinhos. Uns poucos estavam sentados ou deitados. As túnicas, eram todas iguais, embora de cores diferentes. Não havia casas ou choupanas, nem qualquer outro tipo de construção. A paisagem era extremamente bela. Árvores altas, cá e lá arbustos com flores. Ainda não dava para se ver, mas certamente havia um rio ao longe. Pelos menos duas pequenas pontes, em forma de arco, estavam a alguma distância de uma pequena área com uma relva macia, onde Sávio tinha parado para descansar. Deitou-se e olhou para a nesga de céu que se podia entrever através das copas das árvores. Um azul alegre contrastava com o verde escuro. Estranhamente não estava sentindo nem medo, nem ansiedade. Havia paz. Fechou os olhos e ouviu, com muito mais clareza, o estranho canto que vinha de todos os lados. Ainda não sabia o que era, mas tinha certeza de que havia significado nele. Se quisesse se comunicar, teria de aprender aquela incrível linguagem.
Um estranho diálogo
Acordou com alguém falando:
-Ei, amigo, acorde!
Sávio assustou-se. Havia adormecido, ali na grama. Demorou um pouco para entender o que estava acontecendo. Alguém finalmente estava falando a sua língua.
-Você está bem?
Por uns segundos, ele chegou a pensar que tudo tinha sido um sonho ruim e que ele tinha acordado. Percebeu logo, no entanto, que estava no mesmo lugar e que aqueles seres estranhos o olhavam de alguma distância. E o estranho continuou:
-Eu sou o Vidal. Pelo jeito, você acabou de chegar. Sente-se um pouco, precisamos conversar. Você deve estar assustado.
-Que lugar é este, o que está acontecendo? Você pode me ajudar?
-Calma, meu amigo. Existe muita coisa que você precisa aprender. Mas, antes, me diga como você chegou até aqui...
-Percebi, de repente, que três pneus de meu carro estavam furados...
O homem interrompeu:
-Três?
-Isso mesmo. Eu também achei estranho, pois eles eram todos novos. Troquei um e depois fiquei esperando por socorro. Passou muito tempo e nada acontecia. Comecei a andar, andar. De repente, o asfalto acabou. Havia apenas uma pista de terra. Uma coisa absurda, pois conheço aquela estrada...
Sávio já estava se alterando e o homem, paciente, interrompeu-o novamente:
-Eu sei, eu sei... Você encontrou alguém na estrada de terra?
-Sim um tal de...
E Sávio não se lembrava mais do nome. Foi aí que o Vidal o surpreendeu:
-Hedef!
-Isso mesmo! Como você sabe?
-Foi ele que me encontrou também.
-Que língua que ele fala? O que aconteceu com você? Também estava naquela estrada?
-Calma, calma. Algumas coisas eu sei, outras não. Mas posso antecipar, você vai passar muito tempo por aqui. Mas não é tão mau assim. Quanto à língua, ele fala Português e muitas outras línguas. Por outro lado, não fala nenhuma...
-Não entendo, você não conseguiu voltar para Franco da Rocha? Ou você é de Campo Limpo? Não é tão longe, por que a gente não consegue voltar?
-Existem coisas que a gente não entende. A vida é muito mais complicada do que pensamos. Mas, voltando à sua pergunta, eu vim de Goiânia. Uma história bastante parecida, eu também estava numa estrada, um pouco longe do centro e minha caminhonete quebrou. Não passava socorro e eu comecei a andar. Andei, andei e aquela pista, que eu já conhecia, também, estranhamente passou a ser de terra. Fiquei assustado, achei que talvez tivesse bebido demais e estivesse atrapalhado, quando, de longe vi um homem chegando. Usava, estranhamente, uma camisa social, branca e uma espécie de pijama.
-Hedef!
-Isso mesmo!
-Mas é impossível! Goiânia é muito, muito, longe daqui!
-Ou talvez Franco da Rocha seja muito longe daqui!
-Você só pode estar brincando...
-Não, não estou não. Mas acalme-se, pois no final as coisas se encaixam...
-Não, não se encaixam. As coisas que você está falando são coisas de gente louca! Como pode?
-Você talvez tenha razão. Mas se você não se lembrar do que era antes, de onde estava, ou mesmo de quem você era, você vai achar tudo normal.
-Mas acontece que eu me lembro de tudo!
-Ah, é? Como é seu nome?
-Sávio Moreira de Andrade!
-Ótimo! E onde você mora?
-Em Franco da Rocha, bem no centro.
Vidal deu um sorriso, e continuou:
-Como é mesmo o nome da rua?
Sávio olhou assustado para ele. Já não se lembrava do nome da rua onde morava. Lembrava-se do número, entretanto:
-Doze!
-O que é doze?
-Não sei, esse número me veio à cabeça.
-Sávio, se você gosta desse seu nome, me avise. Você vai se esquecer dele eu posso lembrá-lo para você. Mas se você prefere outro, me avise, que agora é a hora em que você pode trocar.
-Onde estamos, que lugar é este?
-É um lugar provisório. Não para mim, eu decidi ficar aqui. Se você quiser ficar também, pode. Mas se você quiser descobrir tudo, o porquê das coisas que estão acontecendo, você vai ter de continuar. Entendeu, Sávio?
-Sávio?
-Não é esse seu nome, Sávio?
Ele já não se lembrava mais do nome. Por isso, Vidal repetiu para ele e avisou que aquele era seu nome. E ele ficou repetindo para si mesmo:
-Sávio, Sávio...
Vidal então perguntou:
-Você é casado? Qual é o nome de sua esposa?
Sávio não se lembrava de mais nada. O Vidal, falou, então, para ele se deitar um pouco e relaxar. Depois fez sinal para um pequeno grupo que estava ali perto e eles se aproximaram. Sentaram-se no chão, à sua volta, e começaram e entoar um canto...
Vidal se afastou.
A terra dos Hezitemas
Aquele lugar era algo que não se podia definir. Não era possível dizer qual era seu tamanho, quais eram seus limites. Talvez fosse só aquilo que a vista alcançasse, talvez cobrisse todo um planeta, talvez tivesse oceanos ou talvez fosse apenas um espaço mental. Também não se contava o tempo ali. Ninguém sabia qual era a data, ninguém se importava com isso. Não havia construções, não havia objetos: só natureza. Seus habitantes - não se podia dizer quantos eram - não comiam, só bebiam água. Era tão pouca a energia de que precisavam que a tiravam da própria água, do próprio ar. Não precisavam falar, nem conseguiriam. Não havia nada para se dizer, só para se sentir. E o que sentiam, expressavam com o canto. Não havia sentimentos de ódio, raiva ou ressentimento. Havia sentimentos de alegria, de paz, de elevação. Nem nome tinha aquela terra. Vidal a chamava de “Terra dos Hezitemas” porque alguém lhe dissera que em alguma língua isso queria dizer indeciso. Mas isso já vai ser explicado. Não havia sexo, nem a necessidade dele. Talvez porque paixão violenta ou vontade descontrolada pudessem perturbar a paz.
Mas os habitantes não foram sempre assim. Chegavam ali, de lugares diversos, bem conscientes e necessitados. Depois, rapidamente, se esqueciam de tudo. De repente, não havia mais passado. Era como nascer de novo. Na verdade, nascer pela primeira vez, pois ninguém se lembrava de nada. Andar naquela estrada de terra, quando se chegava, era como um parto. Se a gente não se lembra de alguma coisa, ela não existe. Não existe de fato. Na verdade, nada existe, o que “pensamos” ser real é o que está em nossa cabeça. Nós nem sabemos se o “nosso real” é o mesmo “real” do outro, com quem estamos conversando. Mesmo quando, aparentemente, estamos falando da mesma coisa e estamos de acordo, em nosso interior, o real que percebemos pode ser completamente diferente do nosso interlocutor. Efetivamente o que não vemos, o que não está em nossa mente, não existe. É mais real uma “fantasia” que criamos e que está em nossa cabeça do que o almoço que comemos há algumas horas atrás e do qual não nos lembramos mais. Alguém poderá dizer que a dor de estômago que estamos sentindo por causa de algum alimento estragado que ingerimos naquela refeição é bem real e está ali. A dor pode ser real porque você está sentindo, mas o fato de que veio de algo que comemos, pode ser algo que acabamos de “inventar” para preenchermos em nossas mentes a necessidade de causa e verossimilhança. Essa também, pode se uma completa ilusão. O que é verossímel? Quais são os padrões para se determinar o que tem a chancela de real? Isso também foi inventado, é uma convenção.
O fato é que o Vidal estava se transformando rapidamente agora. Estava cada vez mais próximo do que é ser um Hezitema. As palavras, ele foi se esquecendo delas com muita rapidez. Só precisava daquelas que se referiam às coisas que havia à sua volta: coisas da natureza, coisas do dia a dia. Ele ainda tinha em sua mente centenas de palavras que se referiam a objetos e elementos que não existiam na terra dos Hezitemas, mas para ele, elas eram apenas sons, uma vez que não correspondiam a nada do que havia por ali. E, tudo que era de antes, não estava mais em sua mente. Nem sabia se seu nome era Vidal. Talvez Hedef tivesse mudado seu nome quando ele chegou. Não tinha ideia também de quanto tempo estava por ali. Uma semana ou um ano pareciam a mesma coisa. Para dizer a verdade, ele nem mais sabia o que essas palavras queriam dizer. Também se esquecera completamente da escrita.
Hedef era um caso um pouco diferente. Ele estava lá há muito mais tempo, mas era quem mais sabia coisas dos antigos e era capaz de explicar algumas, mas não “sentia” o que elas eram. Não se sabe o que tinha acontecido com ele. Tinha sido algo diferente, porém. Entre as coisas que sabia, estava o fato de que seu antigo nome não era Hedef. Esse nome ele havia adotado quando alguém de algum país distante tinha chegado e falou “destino” e era isso o que a palavra significava. Ele gostou e adotou o nome. Naquela época ele ainda se lembrava de muita coisa. Depois foi esquecendo tudo também, inclusive seu antigo nome. Mas a coisa mais interessante e peculiar de Hedef era a linguagem. Ele, ao contrário dos Hezitemas, falava. Mas não se podia dizer qual era sua língua. Na verdade, ele falava e entendia todas, embora não conhecesse nenhuma. Quando alguém chegava àquele lugar, era ele quem fazia o primeiro contato. Sua mente captava o que a pessoa estava falando diretamente de sua cabeça e, sem saber o que o recém-chegado estava dizendo, ele respondia na língua do mesmo. Ele “sentia” a língua em sua mente. Se o outro estivesse muito perturbado, ele não conseguia “ler” o que a pessoa estava falando. Era o que tinha acontecido com o Sávio.
Sávio estava acordando agora. O pequeno grupo que tinha estado a seu lado, já tinha saído. Quando Vidal se aproximou dele, ele estava falando sozinho. Repetia automaticamente frases inteiras, às vezes, só palavras, mas estava evidente que não mais conhecia o significado delas. Isso sempre acontecia, era algum processo mental. Quando ele parou de falar, Vidal lhe explicou que aquele era um lugar de felicidade e paz, e que, se ele quisesse, poderia ficar para sempre. No entanto, se ele tivesse vontade de conhecer mais, saber o significado das coisas, ele teria de abandonar a terra dos Hezitemas. Era algo incerto, ninguém poderia antecipar o que iria acontecer. Havia, porém, uma garantia de evolução, de passagem. Ele teria de decidir. Contou a Sávio um caso recente de uma pessoa do Texas – era esse o nome que a pessoa tinha pronunciado – que tinha caído de uma motocicleta e, quando acordou, estava andando na estrada de terra. Logo mais, Hedef foi encontrá-lo. Sávio perguntou a Vidal o que significava Texas, mas ele também não sabia. A parte da estrada ainda estava bem clara na memória de Sávio. O carro, entratanto, já não sabia mais o que era. De uma maneira vaga, parecia ser uma espécie de caverna azul, onde nascera. Era uma espécie de útero. Era como se ele tivesse nascido já adulto. Tudo, absolutamente tudo, de antes, havia sumido de sua memória.
Um dia, não se sabe há quanto tempo, cada uma daquelas pessoas, que agora andavam por aqueles bosques, tinha sido alguém como ele, como o Vidal, como o Hedef. Não conseguiram se decidir a respeito da busca de um significado. Tinham ficado privados dessa revelação por um lado, mas, por outro, tinham garantido a eternidade ali. Um estado intermediário entre corpo e espírito. Não tinham as necessidades da carne, mas também não tinham todas as graças do espírito. Ficaram indecisos e por isso se chamavam Hezitemas, conforme tinha explicado Vidal. Eram metade espírito, metade corpo. Viveriam para sempre. Antes de decidir o que iria fazer, Sávio precisava meditar. Deveria se juntar a eles nas andanças, andar pelo bosque, pensar. Vidal explicou para o Sávio que aquela situação não era definitiva. Qualquer um dos Hezitemas poderia mudar de ideia um dia, podia decidir prosseguir em sua procura, a qualquer momento. Ainda não tinha visto nenhum caso, mas ele sabia que poderia acontecer. No caso de Sávio, entretanto, Hedef já sabia. Ele iria de encontro a seu destino, sairia à procura do significado das coisas. Ele simplesmente sabia. Sávio é que teria de fazer a escolha, porém. Livre arbítrio.
Sávio não sabia que esse era seu nome. Nem sabia que tinha um nome. Nem precisava. Na verdade, de nada ele precisava. Não precisava e nem sabia falar. Sentia, mas não com os sentidos. Tinha um corpo, mas não tinha consciência dele. Se ele pudesse ser visto com olhos humanos, seria como um Hezitema, agora. Hedef não andava mais por lá. Provavelmente estava em alguma estrada esperando por alguém. E o Vidal? Talvez nunca tivesse existido. Talvez por necessidade, o próprio Sávio o tivesse criado para ter alguma explicação do inexplicável. Agora, Sávio não precisava mais dele e por isso ele não estava mais lá. Não se contava mais o tempo, talvez ele nem existisse por ali. Cem anos ou um minuto? Não se podia dizer. Sávio podia sentir, entretanto, a presença dos Hezitemas. Eles estavam por todo o lado. Eles não mais cantavam ou assobiavam, entretanto. Nem precisariam. Sávio podia sentir tudo que eles queriam transmitir e nada disso era em palavras. Sávio não sabia uma palavra sequer. Nenhuma língua, nenhum sinal ele conhecia. Navegava como um espírito naquele lugar indefinido. Não era espírito, porém. Definitivamente, não. Ele era um ser esperando uma forma.
Cada vez mais, Sávio sentia a presença da água. Sabia que era para lá que teria de ir, no final. Já sabia onde ela estava. Não estava com medo, nem com ansiedade. Sabia, porém, que havia o momento certo para ela. A única coisa que ainda existia de seu mundo anterior eram a noite e o dia. Luz e escuridão, se sucedendo. Durante o dia, ele sentia o azul escuro da água e, à noite, ele sentia seu brilho azul.
Sabia, agora, que estava próximo o momento. Estava quase pronto. Sabia que a outra parte de si mesmo estava chegando e era isso que faltava para ele poder se encontrar com seu destino. E seu destino era o grande lago. Naquela noite, perdida em algum ponto do tempo, ele se sentiu completo. Houve a sensação de que tinha se integrado consigo mesmo. Dirigiu-se, então até as águas. Ficou na margem um tempo indefinido até que se sentiu completo. Era hora de entrar. A lua estava enorme no céu, muito maior do que em outros dias. Conforme ele submergia, a luz reverberava ainda mais na superfície do lago. E, de súbito, era tudo uma intensa luz azul. Ele não conhecia mais as palavras, mas ele sabia que aquilo era e essência da vida acontecendo. Foi, então que ele teve consciência de que respirava e, mais do que isso, respirava muito mais e melhor dentro da água.
O azul intenso agora não era mais azul. Tinha se tornado vermelho, mas ele não sabia a diferença. Ele e o líquido eram uma coisa só. Um vermelho intenso e ele era parte de um todo muito maior. Sávio soube, então o que era a vida. Mas isso foi por um momento muito fugaz. Depois, sua consciência se calou. O tempo começou a contar de novo. Agora havia segundos, minutos, horas e dias. Sávio tinha uma estranha consciência das coisas. Uma consciência irracional, que não se podia medir, sentir ou descrever.
Sávio agora tinha forma novamente. Ele era apenas um ponto no início, mas agora já era um minúsculo grão de arroz. Estava crescendo, porém. A grande lagoa dos Hezitemas, agora era um lugar fechado, definido. Havia identidade, havia nomes, palavras, mas ele ainda não as conhecia. Mas alguém as conhecia e ele era parte desse alguém também.
Ele ainda não sabia, mas agora já estava bem maior. Sentia que havia algo mais além daquelas paredes róseas.
Ouvia vozes, geralmente suaves, falando perto dele. Não entendia seu significado, mas assimilava sua doçura, seu carinho. Sentia o sangue correndo. “Sabia” que existia. Sentia a energia de mãos se aproximando, sabia quando era dele que estavam falando. Houve um momento em que ele era Sávio de novo, mas disso também ele não sabia e muito tempo iria passar até isso ocorrer. E isso era uma novidade: agora o tempo corria, e era ligeiro.
Sávio não se lembrava de nada que tinha acontecido e jamais iria se lembrar. Ele não sabia quem era, nem o que iria ser. Tinha uma vaga consciência de “existir”.
Chegou um momento que ele sabia ser especial. Sairia daquela “câmera” rósea em que ele tão bem se sentia.
Um dia, o menino nasceu. Deram-lhe o nome do pai: Sávio. Ele cresceu rapidamente, foi aprendendo as coisas da vida, era uma criança feliz. Tanto amor vinha da mãe, que, às vezes, mal compreendia porque era tão amado. Depois de algum tempo, já conseguia falar e se comunicar. Houve um momento em que ele teve absoluta consciência de “ser’. Foi nessa época que também sentiu muito mais forte a ausência de um pai. Sua mãe, Luna, tentava explicar que ele não era menos por causa disso. Ele também tinha um pai, só não estava ali. Estava em outro lugar. E, de onde estava, o amava muito. Mais ainda que os outros pais que estavam por ali, os pais de seus colegas.
E Sávio foi crescendo como os outros meninos. E a mãe, Luna, cuidava dele duas vezes. Como pai e como mãe. E Sávio era feliz.
Quando tinha onze anos, Sávio já era mais esperto que os outros de sua idade. E curioso, também. Um dia, quando Luna foi fazer compras, resolveu olhar tudo que estava no escritório. Fotos antigas, coleção de selos, coisas da mãe e coisas do pai que ele não conheceu. De repente, ele viu no fundo de uma gaveta, um envelope sem inscrição nenhuma. Ele não sabia, mas ele era um garoto com intuição. E foi por isso que seu coração palpitou. Sentou-se junto à escrivaninha e o abriu. Viu que eram fotos de um carro azul. Tinha visto muitos daqules. Era um fusca azul. Estava quase irreconhecível, todo destruído. O que eram aquelas fotos? Sabia que tinha algo a ver com ele. Seu coração estava dando pulos. Colocou as fotografias espalhadas na mesa e foi olhando uma por uma. Um grande acidente. Chegou a ver manchas de sangue junto à porta do veículo. Sentiu, então, uma estranha sensação. Forte, mas vaga, muito vaga em relação a seu significado.
Nem percebeu quando sua mãe entrou. Ela ficou branca quando viu que Sávio tinha descoberto as fotos. Abraçou-o, levou-a até a sala. Sentaram-se no sofá. No meio de carinhos, ela explicou. Não era ainda hora de falar, mas já que ele tinha visto, tinha de explicar. Aquelas imagens eram de um acidente, onde seu pai, que também era Sávio, tinha perdido sua vida. Foi um dia depois que ele tinha ficado sabendo que Sávio tinha sido concebido. O pai estava absolutamente feliz. Eles teriam um filho. Tinha ido para campo Limpo resolver um assunto e, quando voltasse, iria pegar a esposa amada no aeroporto e depois levá-la até um restaurante. Comemorariam o advento de uma linda criança. O destino não sabia de seus planos e deixou que um caminhão invadisse a pista, acabando com sua vida. Ficou horas ali, até que alguém passasse. O motorista do caminhão fugiu, deixando-o para trás. O médico falou que ele não morreu na hora. Deve ter passado monentos horríveis ali, padecendo.
Não era para Sávio ficar triste. Estava contando aquilo, pois Sávio precisava saber a verdade.
Sávio cresceu um bom homem. Bem lá no fundo da alma, ele sentia algo muito estranho. Tinha visto a cena do acidente muito antes de ver as fotos. Depois de adulto, teve certeza. A cabeça da gente funciona de uma maneira muito estranha. Lá, não há tempo, nem espaço. É um infinito onde não se pode entrar.
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