O
dono do cinema
Faz muito tempo. Com
certeza eu tinha menos de dez anos. Estava lá na ponta do morro. Uma ladeira
chocante despencava diante de nós e caía lá na praça. Era feita de
paralelepípedos. Por falar nisso, nunca entendi porque deram um nome tão complicado
para uma coisa tão simples: paralelepípedos. Especialmente porque quem tinha de
falar, eram pessoas simples também. Mistérios linguísticos, paralelepípedos. Pois bem, o senhor, cujo nome graças a Deus
eu não me lembro, estava preocupado. Eu sabia
que ele era o dono do cinema, uma coisa muito importante. Naquela época, nada
era mais importante dos que os filmes que a gente via aos domingos. Seu olhar
se estendia até a praça. Do outro lado da praça estava a estrada de ferro, a
gloriosa Santos a Jundiaí. O trem acabara de
apontar do lado direito. Ele deveria parar ali, na estação de Perus, e
depois prosseguiria até São Paulo. Foi aí que o “fulano” – o dono do cinema - falou
comigo e apontou uma mulher magra que começava a atravessar a praça em direção
ao trem que se aproximava. Estendeu-me um envelope e disse que eu teria de
alcançar a mulher e lhe entregar o envelope antes que ela pegasse o trem. Uma
missão impossível, eu sabia, mas criança adora o impossível, especialmente se o
prêmio for um ingresso para a matinê.
Não tive dúvidas. Voei
morro abaixo. Os paralelepípedos desapareciam sob meus pés. O lógico era eu ter
caído e rolado morro abaixo, mas, como você sabe, as crianças de então eram
indestrutíveis. Eu não sabia que podia ser tão veloz. Ainda consegui, com a
cara encostada na tela de arame da estação, chamar pela dona...cujo nome não me
lembro também. Ela não ouviu e entrou no trem. Respirei fundo, decepcionado e
triste, juntei as minhas forças infantis
e comecei a subir de volta o famoso Morro de São Jorge, ou a ladeira do
Cartório. Era óbvio que não daria para eu alcançar a dona. Era uma missão
impossível, como já falei. Eu esperava que o fulano – ainda bem que não me
lembro de seu nome – iria entender o meu desvairado esforço e me dar o ingresso:
afinal dei tudo de mim naquela empreitada. Para ele um ingresso não custava
nada. Para mim era tudo. Para minha lógica infantil, aquilo era óbvio. Fazia
sentido. E daí eu tive a minha maior decepção com um adulto até então. O fulano
resmungou uns palavrões e me deixou ali sozinho na ponta do morro. Eu sabia que
ele não devia fazer aquilo. Fiquei triste e chocado, mas aprendi uma
coisa: existem pessoas que,
definitivamente, não têm coração. Por outro lado, aquilo me fortaleceu para a
vida. E bem feito: mais tarde ele precisou vender o cinema. Isso mesmo, pessoas
assim não merecem ter um cinema, lugar de sonhos, de fantasia...Imagina só, não
combina...
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