Saturday, December 1, 2012

O dono do cinema


O dono do cinema
Faz muito tempo. Com certeza eu tinha menos de dez anos. Estava lá na ponta do morro. Uma ladeira chocante despencava diante de nós e caía lá na praça. Era feita de paralelepípedos. Por falar nisso, nunca entendi porque deram um nome tão complicado para uma coisa tão simples: paralelepípedos. Especialmente porque quem tinha de falar, eram pessoas simples também. Mistérios linguísticos, paralelepípedos.  Pois bem, o senhor, cujo nome graças a Deus eu não me lembro,  estava preocupado. Eu sabia que ele era o dono do cinema, uma coisa muito importante. Naquela época, nada era mais importante dos que os filmes que a gente via aos domingos. Seu olhar se estendia até a praça. Do outro lado da praça estava a estrada de ferro, a gloriosa Santos a Jundiaí. O trem acabara de  apontar do lado direito. Ele deveria parar ali, na estação de Perus, e depois prosseguiria até São Paulo. Foi aí que o “fulano” – o dono do cinema - falou comigo e apontou uma mulher magra que começava a atravessar a praça em direção ao trem que se aproximava. Estendeu-me um envelope e disse que eu teria de alcançar a mulher e lhe entregar o envelope antes que ela pegasse o trem. Uma missão impossível, eu sabia, mas criança adora o impossível, especialmente se o prêmio for um ingresso para a matinê.


Não tive dúvidas. Voei morro abaixo. Os paralelepípedos desapareciam sob meus pés. O lógico era eu ter caído e rolado morro abaixo, mas, como você sabe, as crianças de então eram indestrutíveis. Eu não sabia que podia ser tão veloz. Ainda consegui, com a cara encostada na tela de arame da estação, chamar pela dona...cujo nome não me lembro também. Ela não ouviu e entrou no trem. Respirei fundo, decepcionado e triste,  juntei as minhas forças infantis e comecei a subir de volta o famoso Morro de São Jorge, ou a ladeira do Cartório. Era óbvio que não daria para eu alcançar a dona. Era uma missão impossível, como já falei. Eu esperava que o fulano – ainda bem que não me lembro de seu nome – iria entender o meu desvairado esforço e me dar o ingresso: afinal dei tudo de mim naquela empreitada. Para ele um ingresso não custava nada. Para mim era tudo. Para minha lógica infantil, aquilo era óbvio. Fazia sentido. E daí eu tive a minha maior decepção com um adulto até então. O fulano resmungou uns palavrões e me deixou ali sozinho na ponta do morro. Eu sabia que ele não devia fazer aquilo. Fiquei triste e chocado, mas aprendi uma coisa:  existem pessoas que, definitivamente, não têm coração. Por outro lado, aquilo me fortaleceu para a vida. E bem feito: mais tarde ele precisou vender o cinema. Isso mesmo, pessoas assim não merecem ter um cinema, lugar de sonhos, de fantasia...Imagina só, não combina...

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