“A situação é crítica e todos deveríamos nos unir.
Não podemos permitir
que uma parte da humanidade seja extinta. Os isolados têm que viver.
São a nossa essência mais pura, nosso impulso mais vivo.
Um mundo sem eles
não valeria a pena, e no futuro não haveria perdão
por uma tragédia tão
grande contra nós mesmos e o planeta”
(Sydney Possuelo em “Carta Aberta em Defesa dos Povos
Indígenas Isolados”)
O céu dos últimos dez anos tinha mudado tanto que
Apoema não sabia o que pensar. Além da Lua que ele conhecia, havia mais três.
Luas, estranhas luas. Nem redondas eram. Brilhavam mais do que a Lua-mãe e se
mexiam no céu, menos uma. A mais estranha de todas, por ele apelidada de Amiá,
tinha “filhotes” que saíam de seu ventre e eles eram azuis. Havia outras coisas
no escuro da noite, que já não era tão escura assim. Luzes velozes, mais que
qualquer ave da floresta. As filhas da Lua, às vezes, chegavam bem perto.
Apoema sabia que eles estavam a espiar sua gente, seus afazeres.
Os deuses do dia eram outros deuses. Às vezes
sussurravam sons de um demônio, às vezes emitiam o assobio das divindades. Eram
sempre de dar calafrio. Havia também brilhos intensos a competir com o sol.
Mais do que ele, eles luziam, às vezes, em cor prata, às vezes, em cor de
ouro sutil. Ainda bem, não havia mais crianças na tribo, pois o medo, medo
medonho, iria se instalar em seus corações. Suspeitava algo, porém, Apoema. E
isso doía mais do que uma flecha em seu coração. As criancinhas de sua raça, as
últimas, que se foram há um bom tempo atrás, suspeitava ele, estavam dormindo,
presas, naquelas luas do céu. Se pudesse iria lá ter com elas, resgatar com
suas armas, suas alminhas guerreiras.
Apoema sabia, porém, que, agora, todas as armas eram vãs.
Uma coisa que Apoema não sabia, embora ele
soubesse de tantas outras coisas más, era que, lá fora da floresta, todos
sabiam onde ele estava. E ele, que pensava estar sob a proteção das grandes
copas das árvores. Há muito tempo atrás, um guerreiro branco, camuflado, entrou
na densa mata. Suas vestes eram iguais às folhas, às flores, a tudo que estava
em volta. E sua roupa mudava de cor. Ruído não havia, nem cheiro qualquer. Esse
soldado da Lua, era mais do que um espírito. Tudo podia. E com esse poder,
lançou um dardo invisível no corpo de Apoema. Depois disso, o índio Katawixi
não sabia, eles podiam saber tudo que eles queriam. Sabiam como seu coração
batia. Sabiam quando seu corpo se molhava nas águas do Rio Muquim, que
desaguava no Purus. E, por mais inimaginável que fosse, sabiam de seus
pensamentos. Sabiam quando sentia raiva dos deuses, sabiam quando a tristeza
enorme e a saudade de seus antepassados invadiam sua alma. Sabiam, quando,
inquieto, Apoema se perguntava o que havia acontecido com os deuses de
antigamente.
Era a primavera de 2099 e no ano seguinte
acabaria o grande tratado dos organismos mundiais sobre a preservação das
tribos indígenas isoladas e um organismo internacional poderia, então, adentrar
os territórios, coletar “espécimens”, levá-los para laboratórios. Não que eles
não soubessem de quase tudo. Com os implantes feitos pelos “soldados da Lua”,
DNA, o estado de saúde, qualquer informação já estava com os homens brancos, os
criadores das estranhas luas. Mas eles queriam mais, queriam desvendar outros
segredos que só os últimos homens da tribo Katawixi sabiam e tinham escondido
em seu corpo.
A alma de Apoema, porém, eles nunca iriam
decifrar. Nem os monstros da Terra, nem os sábios da Lua, nem seus soldados,
nem suas máquinas divinas.
Apoema, que já suspeitava que algo iria
acontecer num futuro próximo, trancou em seu peito, segredos que máquina
nenhuma iria adivinhar. Só depois da morte, para seus deuses, só para os seus, ele iria
confidenciar.
Essa vida da gente
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