A ditadura cordial
Talvez você já tenha ouvido falar que o brasileiro é o homem “cordial”. Em “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda explica o termo e o conceito. Ao contrário do que sugere a aparência da palavra, isto não significa que somos generosos, gentis ou coisa assim. O que o autor quer dizer é que nós agimos de acordo com o coração, como sugere o termo cordial, derivado do Latim “cor”. Seguimos nossos sentimentos, nossos interesses, ao invés de seguirmos as regras, o governo, a sociedade e as leis. Colocamos o individual acima do coletivo, não sabemos distinguir entre o que é público e o que é privado. E daí, certamente, vem a ideia do “jeitinho”, do nosso jeito especial e particular de resolver as coisas, em detrimento do coletivo, do público. O grande historiador explica esta nossa característica através de nossos antepassados, de nossa história.
Em princípio, uma ditadura seria o oposto disso. Seria o interesse público acima do individual. Não haveria “jeitinho”, todo mundo estaria sob a “linha dura”. Foi, de certa forma, o que aconteceu. De uns tempos para cá, porém, fiquei pensando. Nossa ditadura foi muito especial em algumas coisas. A mais interessante de todas é que mudávamos de ditador a cada quatro anos. Quem faz isto? Havia até um certo “tipo” de eleição. Normalmente os ditadores são vitalícios. Talvez o pessoal da extrema direita quis dar um ar de “tudo normal”, de “democracia” para algo que era absolutamente anormal e antidemocrático. Havia até dois partidos políticos. O de oposição (antigo MDB) podia até opor, desde que tudo fosse aprovado com antecedência. Era até bonito: uma democracia ao estilo de “Alice no país das maravilhas”. Talvez eles tenham tentado “dar um jeitinho” na ditadura, para ela não parecer tão cruel. O que era feio ficava nos porões.
Certamente o Sérgio Buarque não iria aprovar meu raciocínio, mas não resisto à tentação de chamar esse nosso escuro período de a “ditadura cordial”.
Com o perdão da palavra, é claro.
O Homem Cordial
Sérgio Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil" (Capítulo "O Homem Cordial"), fala sobre o brasileiro e uma característica presente no seu modo de ser: a cordialidade. Porém, cordial, ao contrário do que muitas pessoas pensam, vem da palavra latina cor, cordis, que significa coração. Portanto, o homem cordial não é uma pessoa gentil, mas aquele que age movido pela emoção no lugar da razão, não vê distinção entre o privado e o público, ele detesta formalidades, põe de lado a ética e a civilidade.
Em termos antropológicos, o jeitinho pode ser atribuído a um suposto caráter emocional do brasileiro, descrito como “o homem cordial” pelo antropólogo Sérgio Buarque de Holanda. No livro “Raízes do Brasil”, este autor afirma que o indivíduo brasileiro teria desenvolvido uma histórica propensão à informalidade. Deva-se isso ao fato de as instituições brasileiras terem sido concebidas de forma coercitiva e unilateral, não havendo diálogo entre governantes e governados, mas apenas a imposição de uma lei e de uma ordem consideradas artificiais, quando não inconvenientes aos interesses das elites políticas e econômicas de então. Daí a grande tendência fratricida observada na época do Brasil Império, tendência esta bem ilustradas pelos episódios conhecidos com Guerra dos Farrapos e Confederação do Equador.
Na vida cotidiana, tornava-se comum ignorar as leis em favor das amizades. Desmoralizadas, incapazes de se imporem, as leis não tinham tanto valor quanto, por exemplo, a palavra de um “bom” amigo; além disso, o fato de afastar as leis e seus castigos típicos era uma prova de boa-vontade e um gesto de confiança, o que favorecia boas relações de comércio e tráfico de influência. De acordo com testemunhos de comerciantes holandeses, era impossível fazer negócio com um brasileiro antes de se fazer amizade com este. Um adágio da época dizia que “aos inimigos, as leis; aos amigos, tudo”. A informalidade era – e ainda é – uma forma de se preservar o indivíduo.
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