Uma questão de percepção
Serena
estava cheia da vida. Justo ela que foi sempre cheia de vida. Nada dava certo. Ultimamente
então...Um problema atrás do outro. Começou lá no trabalho. O chefe começou a dar
em cima dela. Nada de sutileza. Afinal, ele era o chefe, e foi direto ao
assunto. Ela precisava do emprego mas mesmo assim acabou com a graça do safado
na hora e também foi direto ao assunto. Sem sutileza também, falou o que tinha
de falar. Pediu as contas e foi para casa chorando. Tinha amigos no emprego,
gostava do que fazia e aquele idiota tinha de estragar tudo. Daí para a frente
foi só tristeza, as dívidas começaram a fazer fila. Desistiu do curso na
faculdade e por tabela da “paquera” que ela tinha lá. De qualquer forma, tinha
descoberto há pouco tempo que o fulano era noivo de uma moça do interior e as
coisas certamente não terminariam bem. Nunca terminam. Na mesma época descobriu
que tinha um pequeno tumor no seio. O médico disse que com quase certeza era benigno,
mas do jeito que as coisas estavam indo...não sei não. Desgraça era o que não
faltava e você sabe que elas nunca vêm sozinhas. O caso de Serena não era
diferente. Em cima disso tudo vieram várias pequenas desgraças, que, de tão
pequenas nem vale a pena falar. Quer dizer, para Serena, elas não eram nada
pequenas. Você sabe como é o velho ditado “pimenta nos olhos dos outros é
refresco”?
A
partir de um certo momento ela começou a pensar em besteiras. Sabe, essa
história de “não vale mais a pena”, “que
tipo de vida é essa? “ e assim por diante. Seria bom se acontecesse alguma
coisa, quem sabe um acidente. Não queria sofrer, tinha de ser rápido. Talvez
tomar uns 20 comprimidos de uma vez...Começaria dormindo, não sofreria nada. Deixaria
um bilhetinho para as amigas e outro para a família. O pai tinha saído de casa
quando ela ainda era pequena, não faria diferença nenhuma. A mãe, entretanto...Coitada,
não iria ser fácil. No fim a dor passa, sempre passa. A angústia no seu peito
aumentou muito naqueles dias. Não tinha vontade de comer, começou a tomar muito
vinho. Ficava enfiada em casa, não falava com ninguém. As pessoas tinham até
medo de falar com ela por telefone, tal era a aflição que ela carregava nas
palavras. Ela era um poço de angústia.
Naquela
tarde de domingo, o desespero começou a aumentar. Aquela ideia de a segunda
estar chegando e você saber que vai ficar em casa sem fazer nada, sem
trabalhar, era algo insuportável. E o destino, você sabe, não tem dó. Imagina o
que mais aconteceu. Ela não tinha olhado
as cartas que recebera na sexta. Na verdade há duas semanas não olhava mais
nada. Não sei por que razão de repente bateu os olhos na carta de um advogado.
Leu por cima, uma história de devolver o carro, processo, etc...Resolveu então
que seria aquela noite. Com algumas
taças de vinho ela tomaria coragem. Separou os comprimidos, um montão, tinha de
funcionar. Começou a beber. E bebeu, bebeu...Não sei se pegou no sono ou
desmaiou, o que foi bom, pois assim não engoliu o remédio suicida.
Eram
nove horas da manhã quando acordou com o
celular tocando. Não ia atender, mas por um impulso que não se pode explicar,
falou um “alô” quase sumido. Do outro lado era um tal de Arnaldo. Era o novo
chefe que estava substituindo o anterior. Entendeu vagamente que a firma estava
pedindo desculpas pelo comportamento do funcionário. Se ela quisesse voltar
seria bem vinda, e além disso iriam pagar o tempo que ela ficou afastada. Se
quisesse, poderia começar no dia seguinte. Iria ter um aumento e tudo mais.
Foi
assim que a Serena recuperou sua serenidade. Assim, sem mais nem menos. Os
outros problemas, grandes e pequenos, fáceis e difíceis, foram indo embora do
jeito que vieram: um atrás do outro, em fila. Assim é a vida, não dê muito
valor paras as desgraças. Também não se entusiasme demais com as coisas boas: elas
vêm e vão. Tudo que acontece tem importância relativa. O que realmente vale é a
percepção que você tem dos fatos e não eles em si mesmos. Resumindo, tente ser
mais otimista. Quem precisa de pessimismo? Afinal com ou sem ele, qualquer dia
desses podemos ser atropelados. Brincadeira. Quer dizer, tudo é possível...
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