Quando
você fica um certo tempo longe de sua terra, as imagens, os aromas, as visões e
as lembranças ficam ainda mais fortes. Por isso é que, às vezes, me lembro do
vilarejo onde passei minha infância e dos fatos que lá ocorreram, com especial
intensidade. Perus, norte da Grande São Paulo, não era, como agora, um
aglomerado de casas e comércio que às vezes se assemelha a secções de uma grande cidade da Índia. Ao contrário,
era então, uma paisagem quase bucólica. A estrada de ferro, antes chamada de
Santos a Jundiaí, ainda corta o local bem no meio e tem, como acompanhante, um
rio que vai serpenteando a seu lado e, no caminho, acaba dividindo a praça
principal bem no meio. O rio e a estrada formam, assim, uma espécie de vale
cercado de elevações, ou morros, como dizíamos. Na minha infância ainda era
tudo muito espalhado, não havia tantas casas e elas estavam como que semeadas
pelas elevações, enquanto o comércio, os bancos, o cinema e tudo mais, estavam
no Centro, em volta à praça. De um dos lados da mesma, saía uma rua, na verdade uma
rampa íngreme, que chamávamos de Morro do Cartório, e que levava a algumas
habitações mais para cima , inclusive a casa onde eu morava. O cartório – o
Tabelionato Farias – ficava bem no meio desta rua, que subia, subia e continuava
subindo. Ao pé da mesma, estava a igreja católica, cuja padroeira era a Santa
Rosa de Lima. E antes de continuar a andar pela “cidade”, quero parar um pouco
por aí. Era uma igreja como outra qualquer, branca, com uma torre, etc. Sei que
mudou, desde então.
Toda
tarde, às seis, algo muito especial acontecia. Nessa época, a esta altura do
dia, as pessoas estavam começando a encerrar as atividades, fechar o comércio,
ir de volta para casa. Então, com uma pompa e força inusitadas para todos,
soava o “Concerto no. 1 para Piano e Orquestra de Tchaikovsky”. O som saía das
torres da pequena igreja e ecoava pelas montanhas, pelas ruas, entrava nas
casas, ia, ia, para além das fronteiras do nosso bairro. Era vibrante,
imponente, poderoso, sensacional. Enchia os ouvidos, o ar e a alma. Se você não
conhece esta peça, está intimado a ouvi-la. É incompreensível que um ser humano
passe a vida sem tê-la ouvido pelo menos uma vez. É uma peça musical grandiosa,
não sei onde o compositor arrumou tanta inspiração...
Depois
de algum tempo, o som ia diminuindo, sem desaparecer, no entanto. Entrava
então a voz de um locutor, altivo,
pomposo: “Ao som deste prefixo musical, vai ao ar o Serviço de Alto-Falantes da
Paróquia da Santa Rosa de Lima de Perus”. Não podia haver nada mais solene do
que isto. Naquele momento, Perus e sua paróquia eram mais importantes que o
Vaticano, que Roma, que Aparecida do Norte, Brasília ou Rio de Janeiro. Éramos
insuperáveis. Tudo parava por alguns segundos, pelo menos na minha imaginação.
Nem sei o que o locutor falava depois. Talvez banalidades, anúncios locais...
Não importa. Naquela hora era Tchaikovsky, e
Tchaikovsky era o papa. Ele nos
aproximava de Deus, mais do que qualquer sermão, livro, exortação. Era um
momento simplesmente lindo, majestoso...
O
locutor era meu irmão, o Bonifácio. Ele faleceu há alguns anos atrás e entre as
inúmeras coisas boas e bonitas de que me recordo a seu respeito, essa foi a
mais apropriada que achei para homenageá-lo.
Como
dizem meus filhos, “era a sua cara”...
Impressionante como esse relato me fez voltar no tempo, quase senti os cheiros da época..
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