O corcunda de Harmonia e as onze grávidas
O Tonhão, coitado, era muito feio. Era corcunda, mas não
era baixinho, não. Desajeitado, cabelos
emaranhados, barba comprida, e além de tudo, mancava. Quando ele chegou na
cidade, chamou muito a atenção. Depois de algum tempo o povo se acostumou -
sempre se acostuma com tudo – e ele fazia parte da paisagem. Não falava nada,
resmungava algumas cosias só, não incomodava ninguém. O ”seu” Hilário tinha
alugado para ele um cubículo no fundo do quintal. Bom inquilino, pagava sempre
adiantado, em dinheiro. Às vezes o “seu” Hilário ficava tentando imaginar como
ele conseguia. Pelo que sabia, ele ficava o dia inteiro pela cidade, não
trabalhava. À noite ia para seu quarto e ficava em silêncio. No final das
contas, o que importava, é que todo o mês ele cumpria com suas obrigações.
A vinda do Tonhão, há seis anos atrás, foi a única novidade
que aconteceu na cidade. Depois mais nada. Foi por isso que seu Hilário ficou
meio surpreso quando, há um mês atrás, ele lhe entregou um bilhete dizendo que
iria ficar fora uns seis meses, mas ia deixar tudo pago pois queria seu
quartinho quando voltasse. Ia ver uns parentes numa cidade longe dali. Na
verdade, ele ficou mais surpreso ainda pelos seis meses adiantados do que pela
partida. Enfim, o que importava era que ele tinha ali um bom inquilino.
Nos dias seguintes algumas pessoas perguntaram sobre o
Tonhão para seu Hilário. Onde andava, tinha morrido, estava doente?
Pacientemente o “seu” Hilário explicava a história e sempre repetia que ele era
um bom sujeito. Mas o povo não teve muito tempo de explorar a novidade, pois
alguns dias depois outra novidade aconteceu. Apareceu na cidade um rapaz novo,
rico e bonitão. Que contraste, a cidade de Harmonia estava melhorando. O fulano
se instalou no melhor, para ser honesto, o único, hotel da cidade. Fez reserva
para dois meses, a notícia se espalhou. Parece que era um investidor, queria
comprar umas terras, fazer um condomínio moderno. Devagarinho foi se
intrometendo nos eventos sociais, fazia amizade com os rapazes, com os
políticos e, com as mulheres, o maior sucesso.
Seu nome era Toni e num instante começou a “paquerar”
diversas garotas. Algumas até romperam com seus antigos namorados e esses
rapidamente se constituíram nos únicos e ferozes inimigos do recém-chegado.
Toni, como ele fazia questão de afirmar, era com “i” e não com ípsilon. Só
vestia roupas de bom gosto, estava sempre perfumado e tinha um carro alugado
bem “da hora”. Depois de algumas semanas, começaram a aparecer as primeiras
histórias. O Toni havia dormido não sei com quem, mais não sei quem, até mulher
casada começou a aparecer na história. Quando a coisa começou a ficar muito
quente, com marido desconfiado, namorada com ciúmes da outra namorada, o Toni
se mandou. Acertou as contas no hotel e saiu de madrugada, quinze dias antes de
completar os dois meses de sua reserva. Gastou bastante, mas não comprou nenhuma
propriedade. Foi um escândalo na cidade. Alguns casamentos desfeitos, pais
desesperados com a “desgraça” das filhas, um vexame.
O pároco, alguns líderes da comunidade e mais alguns
políticos estavam furiosos com o que acontecera. Um fulano vem de fora e
balança toda a pacata comunidade de Harmonia. Que safado, alguém tinha de fazer
alguma coisa, ir atrás do fulano. Claro, ninguém falava na culpa das próprias
“donzelas”, que imediatamente se entregaram ao “galã”, que nunca teve que fazer
nenhum esforço. Aliás, desculpem-me, o único esforço que ele tinha de fazer era
organizar a sua agitada agenda. Todas as mulheres da cidade queriam sair com
ele.
Dois meses depois da partida, Toni ainda era o assunto da
cidade. O assunto estava tão quente que ninguém sequer reparou quando o Tonhão
saltou da carroceria de um caminhão, na rua principal e, mancando mais do que
antes, foi se arrastando com sua corcunda até a os fundos da casa do “seu”
Hilário, onde estava seu quartinho. Resmungou alguma coisa para o “seu” Hilário,
que entendeu com isso que ele queria a chave, e se instalou novamente.
No dia seguinte, lá estava o corcunda outra vez
perambulando pelo centro. É gozado como a figura grotesca do pobre Tonhão era
uma espécie de consolo para a cidadezinha. É como se as coisas estivessem
voltando ao normal. Aquela figura triste, patética, lembrava a todos o que era
real, em contraste com um “bacaninha” safado que tinha vindo ali sabotar a paz
e a boa vontade das pessoas. Interessante, as pessoas começaram a tratá-lo de
uma forma mais amável, ele ficou até mais popular. Algumas pessoas até lhe
dirigiam a palavra e, além disso, até ele ficou um pouco mais social e até
“resmungava” algumas frases com sua voz gutural. Impressionante como duas
pessoas que nada tinham a ver uma com a outra podiam se influenciar dessa
forma. Bom para o Tonhão que o Toni tinha sumido do mapa.
Normalmente esse assunto - o Toni - deveria sumir depois de
alguns meses. O problema é que ficaram “consequências”, se é que você me
entende. Foi por isso que a história não morria. Para ser mais específico,
havia onze “consequências” da passagem de Toni por Harmonia. Onze mulheres
grávidas, três das quais eram casadas. Claro as casadas poderiam estar no
estado por causa dos maridos, mas parece que ninguém estava sequer considerando
a possibilidade. Falaram tanto no número onze, que até o Tonhão, de vez em
quando, ouvia a contabilidade “gravitacional” – desculpem a impropriedade
linguística. Apesar de o assunto ser trágico, vamos ser sinceros, que existe algo
meio cômico sobre o assunto, isso existe. É a velha história: o drama e a comédia muitas vezes se tocam.
Talvez seja por isso que o Tonhão esboçava – só esboçava -um sorriso quando ele
ouvia o fatídico número onze. Não tinha medo de ser pego dando um sorriso no
meio de tanta humilhação e tristeza porque ninguém tinha coragem de olhar
direto para sua cara: aquela barba nojenta, aquela cara esquisita. O que ele
pensava – bom ou mal – não importava.
Algum estranho passava naquela noite perto do quarto do Tonhão,
na rua dos fundos. Era alguém de fora da cidade, perdido, tentando achar um
endereço. Era tarde, mas ele precisava da informação e, como viu luz acesa,
resolveu se aproximar. Ao chegar perto ouviu alguém assobiar “My Way” do Frank
Sinatra, lá dentro. Antes de chamar, resolveu espiar por uma fresta da janela,
de onde saía um facho de luz. O que ele viu não o assustou porque ele não era
dali e, na verdade, não havia teoricamente nada para se assustar. Mas por um
motivo que não se sabe explicar, achou melhor se afastar. Lá dentro, estava um
jovem, alto, se penteando em frente ao espelho. Em cima do criado-mudo havia
uma barba postiça e, no chão, uns trapos.
Estava assim revelada a verdadeira identidade do Toni. Ele
era o Tonhão, ereto, sem corcunda e sem barbas. Bonitão, bem arrumado, com um
pijama fino e tudo mais, pronto para se deitar.
O segredo de Tonhão estava garantido. O estranho andarilho
era de um lugar distante, não sabia das onze mulheres grávidas, não sabia do
Toni, não sabia do Tonhão. Bendita ignorância e bendita a sorte do corcunda!
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