Os diferentes
No começo foram só alguns casos isolados,
ou pelo menos era o que parecia. Algumas pessoas, repentinamente, se
“desligavam”. Passavam a agir como se fossem robôs. Na verdade, elas
continuavam fazendo tudo que faziam antes, até coisas íntimas e pessoais, mas,
lá no fundo, pareciam ter perdido a alma, o espírito. Podia ser um irmão, uma
esposa, um marido, um amigo, um vizinho. Assim, do nada, de repente.
Não demorou muito para ficarmos
sabendo que o fenômeno não era local. Estava acontecendo no mundo todo.
Cientistas e médicos começaram a fazer estudos, exames, análises. Nada. Nada de
objetivo, pelo menos. Tudo parecia normal. Para quem conhecia essas pessoas,
porém, era como se elas tivessem perdido a alma. Havia debates na televisão,
artigos nos jornais e em revistas e blogs. Todos estavam falando do assunto.
Embora os religiosos obviamente falassem sobre isso também, havia um certo
cuidado em “demonizar” o assunto, pois ninguém sabia quem seria o próximo.
Poderia ser o próprio pastor, ou o padre ou ainda alguém muito próximo.
Com o tempo, as coisas foram se
acalmando, porém. O povo acaba se acostumando com tudo. A certa altura verificou-se
que não estavam ocorrendo casos novos. Ninguém, porém, “voltava” daquele
estado. Parecia uma coisa definitiva. Muitos começaram a falar em
“arrebatamento”, embora, tecnicamente aquilo não tinha as características do
mesmo. O ser humano precisa de explicações e, quando não acha, começa a ficar
criativo.
Logo depois que se encerraram novos
casos, muitos governos apareceram com estatísticas. Cerca de 13.3% da população
tinha sido afetada pela “doença” e ironicamente, ficou oficial algo que a maior
parte das pessoas já tinha percebido. Os “diferentes”- eram assim chamados pelo
mundo afora – não morriam. Pelo menos até agora, nenhum tinha. Estatisticamente
isso seria impossível.
Quando ficou claro que a
imortalidade - pelo menos até então – era um fato, começaram a aparecer inúmeras
explicações místicas ou pseudocientíficas. Alguns afirmavam que os “diferentes”,
na verdade, tinham tido suas mentes “raptadas” por de seres de galáxias
distantes.
Tudo isso, entretanto, não durou
muito tempo. Algo novo e extraordinário ocorreu. Os “diferentes” começaram a
desaparecer. Seus corpos, no entanto, nunca eram achados. Antes, porém, que aparecessem
boatos de extermínio, de assassinatos, ou coisas do tipo, ficou claro o que
estava acontecendo. Mas isso também não esclarecia muita coisa. Os diferentes estava se juntando em lugares
específicos. Saíram de suas casas e começaram a viver em áreas isoladas, não
muito longe de suas cidades, de suas comunidades. Eram tão determinados que
ninguém ousava ir atrás deles para convencê-los a voltar. Não sobrou um
diferente sequer que tivesse ficado com a família. Todos, sem exceção, estavam,
em alguma comunidade isolada, perto de suas cidades, pelo mundo afora. Não se
preocupavam com comida, com nada. Foi por muito pouco tempo, porém. Um dia, no
mesmo horário, em todo o mundo, uma névoa branca, luminosa, envolveu a todos,
e, alguns segundos depois, todos os diferentes, sem exceção, haviam
desaparecido.
Havia uma mistura de tristeza, de
alívio, de sabe-se lá o quê! Arrebatamento? Uma raça mais avançada, com remotas
e desconhecidas máquinas, tinha levado embora uma quantidade inusitada de
espécimes humanos para estudo?
O povo precisava continuar vivendo
e, mesmo diante de tão inéditos e estranhos fatos, a rotina continuou. O que
quase ninguém percebia é que todos os fatos relacionados com a vida dos “diferentes”
começaram a sumir da lembrança das pessoas, tanto quanto suas próprias imagens.
Desta forma, processava-se uma espécie de novo passado, se é que tal coisa
possa existir. Não se sabe se havia relação com isso, mas muita coisa mudou na
paisagem e até algumas na geografia. Algumas casas e prédios desapareceram e
outros surgiram. Era como se uma nova realidade, que se adaptava aos que
ficaram, tivesse se formado. Havia no ar uma mistura de surpresa e de tristeza.
Foi então que alguns governos informaram que a grande névoa que tinha coberto
tudo na época do desparecimento dos diferentes, na verdade tinha coberto apenas
os que ficaram. Os diferentes foram para lugares onde a grande luz branca não
tinha alcançado. Isso queria dizer que, quem tinha sumido não eram os
diferentes, éramos nós. Em outras palavras, os “diferentes” éramos nós. Fazia
sentido, nosso mundo praticamente não existia mais, tanto ele tinha mudado. Os
diferentes é que tinham restado e ficado para repovoar a terra. Nós estávamos
em algum lugar diferente. Num outro universo, talvez? Alguns falavam até em
realidade virtual.
Para ser sincero, agora quase
ninguém discute mais isso. Eu ainda falo um pouco sobre o assunto e conheço uns
outros poucos que também o fazem. A grande maioria não tem a menor ideia, não
se lembra de nada. Para eles o mundo sempre foi assim, nunca houve os
diferentes. Essa história de “diferentes” é coisa de gente louca. Alguns loucos
que existem por aí. Loucos como eu.
Ultimamente tenho pensado a mesma
coisa. Que talvez nunca tenha havido os diferentes, que talvez a maioria das
pessoas tenha razão. Aos poucos eu vou me convencendo de que foi tudo uma
ilusão. Talvez seja melhor assim, talvez eu finalmente tenha um pouco de paz.
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