As
cores da argila (Perus: memórias)
Eu
chegava da escola, sentava-me à mesa e, num instante, devorava o prato com
feijão, arroz, e mistura. Depois de subir o Morro do Cartório, quem é que não
fica com fome? Logo a seguir, se eu conseguisse escapar imune de alguma tarefa
dada pela minha mãe, ia correndo para a rua. O objetivo era simples. Encontrar
meus amigos e decidir qual seria a aventura do dia. Quando não havia missão
especial, ficávamos por ali mesmo, jogando taco ou bolinha de gude. Muitas
vezes, porém, íamos até a frente da Igreja de São Jorge, a cem metros de casa.
O lugar ali era mais oficial, mesmo porque naquela época ainda não tinham
deposto o santo de sua verdadeira hierarquia. Olhávamos Perus lá de cima. Uma
sensação inigualável. Parecia tudo de brinquedo lá embaixo; a estrada de ferro,
a ponte, o caminhão passando. Quando você não tem nada e olha lá do alto,
parece que você é dono de tudo. Das nossas brincadeiras, certamente nós éramos.
Era
muito comum ficarmos por ali. O pequeno terreno, em frente à igreja, terminava
de repente e um quase penhasco se desenhava a nossos pés. A chuva tinha causado
erosão e o ventre da terra ficava exposto. E sabe o que havia lá dentro? Um
monte de cores. Isso mesmo, argila colorida. Havia verde, cor de rosa, amarela,
vermelha. Nós, cirurgiões mirins, arrancávamos pedaços e os esculpíamos com
pedaços de madeira. Era bonito de se ver. Aquele colorido todo. Parecia um
caleidoscópio de argila. Como esquecer uma coisa dessas? Aquilo era nosso
tesouro enterrado.
Mais
tarde tínhamos de voltar para casa. Fazer a lição, escrever no caderno de
caligrafia. Acho que eles, como tantas outras coisas, não existem mais. Quando
começava a ficar escuro, minha mãe me chamava:
-Flávio,
vem jantar!
Era
a sopa de feijão, feita no fogo de lenha. O tempo antes de ir para cama era
curto. Não havia televisão, a luz era fraca. Só restava dormir. Dormir e sonhar
com as cores da argila.
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