O padre francês
No
seminário havia duas capelas. Uma, onde os seminaristas assistiam às missas,
ouviam sermões, rezavam, rezavam e... rezavam. Às vezes me sinto no direito de
não mais precisar fazê-lo, minha contabilidade ainda deve estar positiva nessa
área. Havia, entretanto, outra capela. Era do outro lado da propriedade. Exceto
pelo domingo, não havia fiéis frequentando. Ela tinha pelo menos uns 10 altares
laterais, com uma função bem específica. Havia muitos padres no seminário, e
eles – cada um deles – tinha de rezar sua missa.
Havia
sempre um sacristão encarregado de preparar os altares para os padres. Houve um
ano em que essa era a minha função. Cuidadosamente, eu abria uma caixa de
metal, retirava uma hóstia e a colocava sobre um pires – acho que era de prata
– que, por sua vez ia sobre o cálice. As galhetas, uma eu enchia com água e
outra com vinho. O vinho, nunca vou me esquecer, era o “Pindorama” e tinha um
cheiro delicioso. Preparava todos os altares e eles começavam a descer de seus aposentos. Uns faziam missas mais
longas, outros missas mais curtas. Eu os ajudava durante a cerimônia até a hora
em que tinha de subir para o refeitório, onde iria tomar o café da manhã.
Se
você conhece alguma coisa sobre a igreja católica, deve saber que a parte mais
importante da missa é a consagração, a parte onde, pelo poder divino do
sacerdote, o vinho se torna o sangue de Cristo, e o pão – no caso, a hóstia –
se torna o corpo. Isso é uma coisa básica. Por isso é que havia algo que
acontecia ali, que era, no mínimo, bizarra. Havia um padre, francês, que mal
falava Português, que tinha muito sono de manhã. Seus olhos vinham pesados para
o altar. Muitas vezes eu o ajudava na
cerimônia. E não é que, vez ou outra, ele se esquecia da parte da consagração?
Como pode? É como fazer um jogo de futebol sem a bola, mal comparando. Para
mim, era um sacrilégio e certamente seria para seus colegas. Mas aquilo era um
segredo. Para ele, porque estava quase dormindo e nem percebia. Para mim, porque
eu jamais falaria isso para alguém.
Confesso,
porém, que eu também tinha meus segredos. Sabe o vinho “Pindorama” aquele que
tinha um cheiro delicioso? Não é que o gosto também era divino? Desculpe a ousadia de minhas palavras. Quase
todo dia eu experimentava um pouquinho, às vezes mais do que um pouquinho. Precisava,
vez ou outra, comer algumas hóstias para aliviar o efeito do álcool. Claro, não
eram consagradas. Eu não era um pecador como o padre Jacques Lafévre. Deus me
livre, missa sem consagração! O Lafévre, nem tenho certeza do nome, certamente
ainda estava com sono quando ia para o seu delicioso café da manhã, depois da
missa. Ou diria, quase missa? Talvez por
causa do clima dos trópicos? E eu ia, alegre, muitas vezes, bem alegre, para o
meu café da manhã, também. Uma café bem mais simples do que o dele. Meu pecado,
também, era bem mais simples que o dele e eu era apenas um garoto...Imaginem,
esquecer da consagração...ooooooOOO0OOOooooo
A crônica acima não faz parte do livro abaixo
Essa vida da gente
Para adquirir este livro no Brasil
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