O oitavo pecado
Há seis coisas que o Senhor odeia,
sete coisas que ele detesta:
olhos altivos, língua mentirosa,
mãos que derramam sangue inocente,
coração que traça planos perversos,
pés que se apressam para fazer o mal,
a testemunha falsa que espalha mentiras
e aquele que provoca discórdia
entre irmãos.
(Provérbios 6:16-19)
Damian encontra Riana
Damian era o
nome dele e Riana era o nome dela. Por acaso se encontraram e por opção se
enamoraram. Juntos ficaram antes mesmo de se conhecerem bem. Coisa do destino,
coisa do destino premeditado. Quem era Damian, quem era Riana? Ninguém sabe. O
pouco que sei, vou colocar aqui. Sem restrições. Uma pintura escrita é o que
vou fazer, gráfica fizera se fosse um pintor. Tire suas próprias conclusões,
que as minhas não valem. São tendenciosas, vão pender para um lado. As suas
também vão pender. Mas aí as pendências são suas e a responsabilidade não é
minha. Não cabe a você, muito menos a mim, julgar. Os fatos estão aqui, do
melhor jeito que achei de contar.
Depois que se
encontraram, os dois não são mais os dois. São o que resultaram da colisão.
Falar “colisão” talvez seja um exagero, mas é o que eu sinto e como eu estou no
encargo de narrar, é a palavra que escolhi. Antes, porém, cada um era por si mesmo.
A Riana era uma moça regular. Mais bonita que feia, só fazia coisa errada
quando não tinha jeito, era espiritual desde que a carne não atrapalhasse. Uma
mulher do mundo, mas não do jeito que normalmente se entende. Era, enfim, uma
mulher regular, se é que tal espécie existe. Foi tudo uma quase mesmice até
então. Nem buracos, nem altos voos. Só
ela sim, só ela e sua regular, comum vida de mulher. Sua vida, seus passos, sua
meninice, sua juventude, seu começo de ser mulher. Nem trancos, nem barrancos, a
não ser os pequenos, aqueles que estão presentes na vida de todos nós.
Não foi no bar,
não foi no clube, nem em festa nenhuma.
Por acaso, isso sim, num café, numa bela manhã de sol. Um sorriso, uma
desculpa, uma pergunta e ele se apresentou. Telefones anotados, destinos
marcados, assim é que a vida é.
Já do Damian,
nem sei o que posso dizer. Porque o que sei agora é só o que eu fiquei sabendo
depois dele encontrar a Riana. Não sei de seu começo, de suas procedências, de
seus antecedentes. Só posso imaginar. E
isso não quero. O acontecido aqui, por si só, é demais. Para que somar
conjeturas do passado? Talvez um passado ainda mais distante que, na verdade,
nunca passa, continua voltando, assombrando. E, posso lhe dizer, Damian não é
alguém que você deva por nas suas preces. Não tem validade, não tem remédio e
muito menos razão. Seria prece jogada fora, o que seria uma pena, num mundo com
tanta precisão dela. Mas não se assuste não, os atos do Damian, as coisas que
ele fez, são coisas normais, do dia a dia, de todo lugar. Não que seja coisa
que você veja sempre, mas coisa que sempre acontece, isso é. É sim. Mas por que
colocar a carroça nas frentes dos bois?
Marcaram o
primeiro encontro e foi bom. Conversa muita, ele nada demais tentou. Ela não
precisava, mas ainda assim mesmo se reservou. Resguardo é bom sempre. Era assim
que Damian queria, era assim que ele gostava. Ninguém gosta de mulher
oferecida. Menos hoje em dia que há tantas delas. Mas os sentimentos - se é
posso chamá-los assim, que Deus me perdoe - foram, segura e lentamente
crescendo. Conversas boas, ah, o Damian sabia conversar. Conversa boa, de
danar. Só carinhos, beijos quentes, só
uma amostra, só isso queria o Damian mostrar. Estava ali para coisa grande,
fatura alta, não deveria estragar tudo com trocos pequenos. Damian sempre foi
bom de avaliar, conseguir o máximo de tudo que aparecia à sua frente.
Foi num dia
belo de sol. As coisas grandes acontecem em dias de sol. Se ninguém falou isso,
vou falar aqui. Esse foi um dia importante. Não houve muita coisa, mas houve
decisão. Formulação. Escolha. As maiores escolhas não são ditas em voz alta.
Não são expressas em palavras. Estão bem lá no oculto da mente, fervendo,
querendo acontecer. A única coisa que se diz é que aquilo não pode acontecer,
não deve acontecer. Mas é tudo mentira da mente. Você já quis, você já decidiu.
Não pensa com palavras, não diz as palavras. Truque barato da mente. Se não
diz, se a palavra não sai, você não concordou ainda. Lá nas profundas do
cérebro, entretanto, decidido está. Firme, escrito na rocha do invisível. Sabe
disso o Freud e outros também. E quem é um contador de histórias para
contradizê-los? Estou sempre divagando,
mas sei por que isso é assim. Medo de enfrentar os acontecimentos, mesmo só na
narração. Dá até um frio na espinha, mas devo cumprir minha obrigação. A de
Damian e de Riana era de enfrentar o destino, a minha é de contar o sucedido. O
mundo precisa de esclarecimentos e é por isso que estou fazendo a minha parte.
Repito, não julgo, só conto, dentro do que pode minha pobre habilidade de usar
os vocábulos. Devo advertir, porém, que para certas coisas que estão por vir,
não há vocábulos, nem palavras, nem motes, nem rimas suficientes ou adequadas.
Estou tomando folego e prometo, vou continuar.
Foi num belo
dia de sol, como estava dizendo. Damian falou coisas doces, coisas graciosas. E
ele falava de um jeito gostoso, bom de se ouvir. Junto com as palavras, bem ali
no banco do parque, ele fazia carícias também. Suave passava as mãos nos braços
da moça Riana, que ali mais parecia uma adolescente fervendo de desejo. Os pelos
se esticavam sobre a pele, num alvoroço, tentando entender o porquê de tanta
vibração. Daí um sussurro nos ouvidos. Eu disse já e reafirmo, esse Damian era
um danado com o linguajar. Falava coisas de um jeito que não havia jeito de não
se notar. Ele não foi muito além nos gestos, mas falou coisas e mais coisas e
coisas mais falou. Como pode alguém entrar em êxtase só com um palavreado? Esse
era o segredo de Damian. Riana, acho, não tinha segredos não. Muito menos para
o Damian. Deixou transparecer seu sentir, sua vibração. Deixou que o Damian
sentisse o curso de seus pensamentos, de seus anseios. Nem precisava, Damian já
sabia de tudo.
Um pássaro
bonito, de repente, pousou bem na frente do banco. Ficou ali, sem se incomodar
com os segredos dos dois. Pois bem, esse pequeno pássaro, bonito, de cabeça
vermelha, foi a testemunha do que então aconteceu. De repente, do nada, Damian
falou. Uma coisa quase sem sentido, uma coisa que parecia não pertencer ao
momento. Mas o Damian sabia que era a hora de falar. Falou dos sete pecados
capitais. Falou assim, que todos deveriam, pelo menos uma vez, cada um deles
experimentar. Ainda mais, ela, uma moça bonita, que quase não sabia pecar.
Estava ele, ali, o Damian para ajudar. Pecar, gostoso, sete vezes, por todas as
cores do arco-íris passar. Havia perdão para tudo. Era só não continuar. Todos
os sete, nenhum podia faltar. Riana teve
um pequeno sobressalto. Um ligeiro estremecimento passou por todo seu corpo. E
vou lhe dizer: mesmo sendo dono dessa narrativa, nem eu mesmo sei se foi de
medo, de pavor, de prazer ou de algo mais, esse frio que passou por dentro de
seu espírito. Damian falou. Falou e parecia que nem tinha falado. Olhou para
ela com um olhar lânguido que nunca antes ela tinha visto nem nele, nem nos
outros homens que conhecera. Nem sei se foi ela mesma que falou, se foi algo
dentro dela, ou alguém mais. Mas foi de sua boca, agora já lasciva, que saíram
as palavras “quero sim”. Damian mostrou surpresa porque era o que ele devia mostrar.
Surpresa e deleite. A surpresa era mentira, mas o deleite era a pura
verdade.
Todos sabem que
há sete pecados capitais: luxúria, gula, avareza, ira, soberba, vaidade e a
preguiça. Foi assim mesmo nessa ordem que Damian para ela recitou. Marcado foi
para o próximo domingo o primeiro dos pecados: a luxúria.
Luxúria
A essa altura,
Riana já estava entregue. Antecipava o prazer. Entendia agora por que Damian
nunca chegara antes ao fundo de seus desejos. Para este domingo reservara os
prazeres todos. Sonhou, imaginou, gozou com antecipação.
Damian sabia de
uma cabana, isolada, rodeada de árvores. Um dia só para eles, cheio de
prazeres, cheio de luxúria.
E lá estavam.
Damian preparou a Riana para a torrente de prazeres. Fez carícias que ela não
conhecia. De um jeito que ela não sabia. Com uma intensidade desmedida. E ela
foi crescendo por dentro, seu prazer aumentando. Coisa jamais sentida, jamais
imaginada. Ela se deliciava na preparação, se consumia de desejos.
E, então, ela
pensou que era a hora de Damian. Que ele viesse porque era hora dele vir. Ela
não aguentava mais, não mais podia esperar. Que viesse o Damian, porque ele
sabia das coisas, se sabia. Já sabia disso, sem mesmo antes experimentar.
Fechou os olhos
na expectativa. Aqueles segundos intermináveis da ausência de Damian. Justo
agora ele tinha saído. Riana então percebeu, de olhos fechados, que havia
alguém na cama. Que bom que ele voltara. Mas ele não era ele, eram três. Ele
nem estava lá. Impressionada, assustou-se um pouco. Depois achou que era sua
imaginação. Mas quando a tocaram, percebeu que era muito mais do que tudo
aquilo. Damian queria mais para ela. Queria que ela tivesse um gozo infinito. E
aqueles três eram os mestres do prazer. E foi de todos os jeitos, de todas as
formas. Formas insuspeitas de se fazer, como nunca fizera antes. Cada um por
si, os três juntos, como numa sinfonia suprema de prazer. A harmonia profunda
do gozo. A intensidade impensável. E, quando ela pensava que era o máximo, o
pico de tudo, um limite mais alto alcançava. Os três, em uníssono, a fizeram
chegar. Afinal, estava cansada. Aquilo arrancara todas as forças de seu ser.
E ela
descansou. Não sabe quanto tempo. Sonhou que estava com vontade de novo. Estava
sim, mas acordara. Agora era a vez de Damian, os outros já tinham partido. E
ele sorria maroto, cheio de gozo e luxúria. Fazia as coisas de seu pensamento,
as coisas de que ela mais gostava. Os três, ela pensou, tinham sido para ela
aprender o que lhe fazia bem. Pois agora, ele sozinho, lhe dava mais prazer do
que os outros três juntos. Até sua alma gozava. E era cada vez mais, cada vez
mais. Houve uma hora em que se perdeu. Não sabia onde estava. Pediu que ele
parasse, não conseguia mais, era muito para seu corpo. Ele obedeceu, não antes
de um supremo gozo final. E ela descansou mais uma vez.
E assim foi o
dia da luxúria.
Gula
Riana tinha bom
apetite, mas não se podia dizer que era gulosa. Diante do que acontecera no
domingo passado, difícil dizer o que Damian era capaz de fazer. Até agora ela
não conseguia entender como poderia ter tido tanto prazer. Com a gula seria
isso possível? Na mesma cabana, diferente pecado. O dia todo para comer. Quando
lá chegaram, tudo já estava pronto. O Damian, acho que tinha poderes, sabia de
tudo que ela gostava.
Mas não se pode
ir direto aos pratos, assim nem mais nem menos. Tinha de haver preparação, ele
dizia. Primeiro foi uma pílula, a cor acho que era a rosa, que ela tomou. Entendido, disse que aquilo aguçava as
papilas. Brincou coma s palavras. Papilas, pupilas. Não lhe disse que o danado
era bom de usar as palavras? E foi verdade. Uma coisinha besta, uma migalha que
lhe pôs na boca, deu assim um senso enorme de prazer. Como podia haver
escondido numa insignificante migalha, tanto prazer? Mas foi mais do que isso.
Vestiu-se o Damian de garçom lá no quarto e apareceu, de avental e tudo, com
uma bandeja cheia de pequenos, quase minúsculos salgadinhos. Podia se ver que
havia folhinhas verdes picadas sobre eles. Que experimentasse, era bom, aguçava
as papilas também. De novo aquela brincadeira besta: papilas, pupilas. Preciso
era provocar as papilas de sua pupila, a pupila preferida do Damian. Na boca
dele, aquele trocadilho bobo parecia bem. Tinha graça. Nem sabia bem o que
pupila era. O que significava, mas se Damian precisava de uma pupila, que seja.
Da papila, suspeitava o significado, não era tão burra assim.
Foi então que
Riana aprendeu que Damian, ao contrário do que se possa pensar, tinha
disciplina. Veja só, que gozado. Aquele aguçar dos sentidos, que as folhinhas
traziam, multiplicado por mil, lembrava os prazeres antes sentidos pelo seu
corpo no anterior domingo. Gozado como as sensações se cruzam. Sentiu vontade.
Essas vontades da carne. Procurou o beijo de Damian. Esse se afastou com o dedo
dizendo que não. Brincando, claro, pois era assim que ele tudo fazia. Brincando
com as coisas, brincando com as palavras. Posso lhe dizer, porém, com
autoridade de narrador, que ele era mais sério do que parecia. Era do tipo que
se concentra num objetivo. Sabe focar. Isso me lembra de focas. Que diabos, o
que uma foca tem a ver com isso? Talvez tenha, mas Damian é que sabe fazer
essas analogias. Talvez estivesse pensando na história do boto. Por que não?
Ele é cheio de metáforas, metonímias e antíteses. Brinca na mente, brinca com a
mente. Conhece as fraquezas de mulher. As de homem também. Você percebe como
esse Damian é? Como ele procede? Dá para perceber? Tenho que dizer tudo com
palavras. Você não pode deduzir. Queria que você deduzisse tudo, pois, para
mim, é difícil dizer essas coisas. Só faço por pura obrigação. Coisa do cosmos.
Do carma. Preciso escrever.
De novo
divagando. Não sou psicólogo, mas eu mesmo acho que isso é uma tentativa de
evitar o inevitável. O destino de Riana. Só de Riana, pois Damian já nasceu com
destino feito, acertado. Você me entende? Não quero dizer com todas as
palavras. Não posso. Preciso voltar à narração. Depois de experimentadas todas
aquelas ervas, ervinhas, verdes, algo ocorreu. Pela primeira vez, Riana
conheceu tudo que podia sentir com suas papilas. Papilas sim, não pupilas.
Embora, agora, até faça sentido. As pupilas do senhor reitor. Sendo, é claro,
Damian, uma espécie reitor. Que reitera, que dirige, que conduz, que faz
acontecer. Reitor. Sem mandar, sem violência. Só com as palavras. Riana ainda não
sabia dos detalhes. Ela nunca tinha lido “As Pupilas do Senhor Reitor”. Quem
haveria? Quase ninguém hoje em dia, houvera de ler um livro assim.
E daí vieram os
manjares. Suprema delícia, suprema quantidade. Delícias quase infinitas. E
Riana sentia tudo de todas as coisas que bebia e comia. Até que seu corpo não
aguentou. Ela desmaiou. Por quase duas horas ficou, inconsciente e então Damian
fez com que ela botasse tudo para fora. Para poder comer mais, como os romanos
faziam. E ela sentiu o maior prazer de
sua vida, tanto ou mais do que quando se entregou à luxúria.
E assim foi o
dia da gula.
Avareza
O domingo da
avareza foi mais simples, mas foi muito bom também. Damian saiu com Riana pela
avenida. Tinha uma grande sacola na mão. Paravam de banco em banco. Ele tinha
um cartão plástico verde. De todos os caixas automáticos tirava todo o
dinheiro.
E dava para
Riana. E dizia que era dela. Para ela guardar, só para ela. E, quando a sacola
não dava mais para segurar de tão pesada, pegaram outra avenida. Havia mendigos
e pedintes dos dois lados. Eles pareciam saber que havia dinheiro na sacola.
Pediam esmolas, desesperados. Riana chegou a pegar uma nota para dar para o
primeiro, mas Damian segurou sua mão e deu aquele olhar. Aquele dinheiro era
dela, mesmo uma nota só que ela desse, poderia mais tarde faltar. E foram
andando e muitos pedidos foram feitos. Ela resistiu, segurou firme a sacola e
chegou até o fim. Pararam para jantar. Uma delícia, lembrou-se do domingo
passado, o da gula. Quando a conta chegou, buscou uma nota no meio das outras
tantas. Damian segurou sua mão e ele pagou. Aquele dinheiro era seu. Era para
guardar. Nada para a família, nada para ninguém. E no fim do dia ela era
praticamente uma pessoa rica. Assim deveria ficar, e certamente melhorar. Não
diz o dito popular que “dinheiro chama mais dinheiro”? Muito mais dinheiro
aquele seu dinheiro iria chamar. E, do mesmo modo como havia amado o corpo de
Damian e as delícias de sabor que ele havia trazido, agora amava de verdade
aquele dinheiro todo e nele se abraçava. Era um gozo ter toda aquela fortuna em
suas mãos. E Damian prometia que muito, muito mais, haveria de chegar. A regra
era simples. Nunca, jamais, gastar um centavo em vão. E ele iria, sim, se
multiplicar.
E assim foi o
dia da avareza.
Ira
Era de se
admirar como Damian sabia das coisas. Naquele domingo, fez Riana passar por
poucas e boas. Uma velha a xingou, um
outro rapaz que passava a chamou de “vagabunda”. Daí veio um gesto obsceno. Por
que tanto ódio contra ela? Ela começava a sentir ódio também. E aquelas duas
fulanas que, ao passar, riram dela? O
seu ódio contra as pessoas foi aumentando, aumentando. Se mais alguém dissesse
alguma coisa, ela estouraria de raiva. Damian disse que aquilo era bom. Era bom
e ela tinha que fazer alguma coisa. Entraram numa casa, não muito longe dali.
Damian conhecia muita coisa, muita gente. Havia um quintal na casa. Ela, porém,
teve de esperar na parte de dentro. Damian fez com que ela se sentasse. Queria
que ela pensasse, como poderia se vingar daquelas pessoas. Depois, saiu. Voltou
três horas depois. Antes de entrar, porém, ele tinha feito algo no quintal.
Havia mais gente com ele. Gente protestando, reclamando, outros chorando.
Entrou na sala e colocou uma arma, aquelas de repetição, nas mãos de Riana. E
disse a ela que aquela era sua hora. Lá fora, uma cena de horror. Entre as duas
árvores do quintal havia uma fila de pessoas, amarradas umas às outras.
Reconheceu-as todas. Foram as mesmas que a tinham ofendido durante o dia.
Damian falou que quando ela apertasse o gatilho, a arma não iria para de
atirar. Não até que tudo acabasse. Ela estava cega de ódio. Começou a atirar
nas pessoas. Foram todas caindo. De repente, do nada, apareceu uma jovem no
meio deles e não era nenhuma das que a ofenderam, mas não podia parar. Não
queria parar. Continuou atirando. De repente a arma parou. Estavam todos
mortos, deitados no chão. Damian, então, pegou a arma de suas mãos e a jogou no
chão. Puxou Riana pela mão e a levou para casa. Ela tinha uma sensação plena de
vingança. Havia a imagem da moça no meio daquilo tudo. A inocente. De certa
forma a conhecia de algum lugar, não sabia de onde. Ainda assim, não se sentiu
mal. Descansou.
E assim foi o
dia da ira.
Soberba, inveja
Damian parecia
conhecer Riana há muito tempo. Assim como, se a conhecesse antes de conhecê-la.
E o pecado da soberba era fácil para ela, pois ela já o tinha em seu coração.
Fácil para ele também, pois não tinha muito o que fazer. Só fez o que sabia
fazer bem. Usou palavras, bem usadas palavras. Falou de como ela era bonita,
inteligente, melhor do que todas as suas amigas. Melhor do que sua própria
família. E foi falando, falando... Daí Damian pediu para que ela fosse pela
cidade apresentando-o a seus amigos, sua família. E a Riana estava bonita
mesmo. De rosto, de roupa. E naquele dia até o próprio Damian caprichou no seu
visual. Mais por causa de Riana. Para mostrar para os outros o homem elegante,
bonito e inteligente que ela tinha. E como ele gostava dela. Era uma inveja só,
o que todos sentiam dela. E conforme ela falava com as pessoas, mais ela se
sentia melhor do que todas. Mais bonita, mais inteligente. Dava dó ver aquelas
pessoas todas, nunca chegariam a seus pés.
Por último,
Damian deixou a Lívia. Mas ele tinha seus motivos. A Lívia não era uma qualquer.
Ela tinha jeito, ela tinha classe. E o marido que ela tinha então, muito melhor
do que o Damian. Além disso, era uma pessoa direta, sem segredos. A Riana soube
então o inverso. Ela era que agora morria de inveja.
À noite, Damian
a consolou. Que besteira, é claro que ela era melhor que Lívia. Nem dava para
comparar. De nada adiantava. Dessa vez nem o Damian conseguia consolação para a
alma de Riana. Riana nunca sentiu tanta inveja de alguém. Foi daí que Damian
deixou escapar algo que não era para escapar. Ou era? Era astuto o Damian,
tenho certeza de que foi de propósito, mas isso eu não posso provar. Falou,
assim, no meio da conversa. Você sabe como a Lívia gosta da irmã, não sabe?
Eram ligadas desde pequenas. Riana confirmou e já estava começando a sentir
inveja dela também. Esse Damian, ao invés de ajudar, estava piorando as coisas.
Mas os caminhos do Damian são os caminhos do Damian. São estreitos, seguros,
sabe por onde anda. Não deixa escapar nada nem ninguém.
Quando
percebeu, Damian estava mostrando uma foto para ela. Logo identificou a cena.
Eram aqueles corpos todos, mortos, sangrando, deitados no chão. Foi no dia da
ira, quando ela tinha atirado em todos. Como podia ter feito aquilo? Como já
estava esquecendo aquela coisa horrível? Como fora capaz? Antes que ela
expressasse seus pensamentos em palavras, o dedo de Damian apontava uma das
vítimas. Dava bem para ver o rosto. Era a irmã da Lívia. Certeza. Ela estava
entre os mortos, aqueles que a Riana havia matado e ela nem sabia. Era aquela
jovem que apareceu na frente dos outros e nem era para estar lá, não era para
ser assassinada. Amanhã a polícia iria identificar os corpos e a Lívia seria
notificada. Já pensou que dor? Ela não podia imaginar. Lá no fundo, bem no
fundo, Riana se sentiu vingada. Não precisava mais sentir inveja.
Assim foi o dia
da soberba e da inveja. Dois pecados num dia só.
Preguiça
E o próximo
pecado nem precisou esperar. Já começou na segunda, tinha até o outro domingo
para pecar. Pecado fácil. Era só não fazer nada. Não precisava trabalhar, sua
única obrigação era vadiar. E foi os que os dois fizeram na cabana. Dormiam
tarde e até mais tarde no dia seguinte. Bebiam e comiam. Contavam vantagem.
Repassaram todos os pecados, sem muito esforço, pois era a semana da preguiça.
Foi assim que Damian lhe ensinou. Ficar assim, sem fazer nada. Nadinha.
E por três
noites ela teve um sonho, o mesmo sonho. Um anjo, com cara de mulher, que lhe
aparecia. Era a cara da Lívia, mas era um anjo. E o anjo lhe trazia uma
mensagem. Que atrás da casa, no bosque, se ela olhasse bem, havia uma trilha.
Dez quilômetros ela teria de andar. Depois encontraria uma capela. Era só
entrar e pedir perdão, de verdade, com sincero coração. Ficar lá uma hora,
voltar e terminar com o Damian. Se fizesse, não só os seus pecados seriam todos
perdoados, ela poderia recomeçar a vida. E mais ainda, a vida dos mortos seria
restabelecida. Dos mortos que ela matara, começando pela irmã da Lívia. Assim
como foi fácil cair no pecado, agora seria fácil obter o perdão. Ela teria três
chances. Três noites o anjo viria para avisar.
Ela resolveu
que era o que ia fazer. Ser perdoada, tudo recomeçar, devolver a vida a quem
matara. No primeiro dia, ela olhou para
as árvores atrás da casa e viu uma pequena placa que dizia “Caminho do perdão”
e havia uma seta. Olhando para aquela direção dava para ver a pequena trilha.
Era verdade, o sonho era um aviso. O Damian, porém, estava perto dela o tempo
todo, e ela deixou para o segundo dia. No segundo dia, ela acordou tarde, estava
com muito sono e achou que talvez aquilo tivesse sido apenas um sonho. No
terceiro dia, ela faria a caminhada e tudo voltaria ao normal. Talvez tudo
tivesse sido um pesadelo, e indo até a capela, conforme seu sonho, tudo se
esclareceria. Assim faria no terceiro dia. Quando acordou, lá estava o Damian,
servindo-lhe o café da manhã na cama. Depois, começaram a fazer amor e foi
muito bom. Depois, ela pegou no sono. Parecia até que Damian tinha colocado
algo na sua bebida. Pois dormiu como chumbo. Quando acordou, olhou para o
relógio da parede e viu que era um novo dia, um minuto havia passado após a
meia-noite. Era claro que aquilo tinha sido manipulação do Damian. A terceira
chance de perdão havia passado e era a última.
E a semana foi
passando e o domingo se aproximando. O tempo passa, queira você ou não, faça
você nada ou trabalhe duro, o tempo passa. Dormir, comer, relaxar. Pensar em
coisas que não se pode. Pecar o pecado da luxúria, da gula, tudo de novo. O
Damian provia tudo. Tudo já estava lá. A semana foi passando e o domingo chegou
para Riana. Para o Damian, todos os dias são domingo, pois ele é de diferente
natureza. Acho que você me entende.
Durante a
semana, Riana nem conseguia pensar. Era uma preguiceira pesada, quem tinha
vontade de pensar? Era de manhã, no domingo.
Foi daí que ela acordou, bem tarde, sol quase lá no meio do céu. Quando saiu e
foi para a varanda, lá estava o Damian, formoso como sempre. Ela se
espreguiçou, como quem não queria nada e perguntou para ele “E agora? ”. Damian
apontou para o azul do firmamento e perguntou se ela gostava? Não entendeu
direito, mas disse que gostava. Damian então disse que naquele dia eles iam
voar. Bem alto. Coisa inédita, ela ia gostar.
O oitavo pecado
Levou-a para
dentro e mandou-a sentar-se no sofá. Estava preparando algo. Chegou então perto
dela, com um pires todo desenhado de flores. As flores, o desenho na porcelana,
não eram importantes. Mas não dizem que o demônio está nos detalhes? Não que o
Damian fosse algo assim, é só uma força de expressão. Os desenhos do pires eram
secundários. O importante era aquele pó especial, azulado, que estava lá. Riana
sabia muito bem o que era aquilo. Não devia usar, mas usou. O que poderia
acontecer? Depois de tantos pecados, que diferença fazia? Retifico, ela não fez
o pecado, quis fazer, mas o Damian não deixou, guardou tudo de novo. Ela não
podia. Tinha que se confessar primeiro. Entregar os pecados na igreja, falar
tudo. Ser perdoada. O pecado só é bom porque pode ser perdoado. Ela ficou com
um pouco de raiva do Damian, pois agora estava com vontade. Agora ela tinha
entendido o que era aquele azul, alto, para onde o Damian a queria levar.
Sentido figurado, é claro. O azul do céu, vindo do pó do pires, o pires com
flores.
Na segunda
mesmo, às sete da noite, passou em uma igreja, apesar de ter passado o prazo. Ficou
perto do confessionário. Uma moça, quase menina, confessava seus pecados. Ela
apenas conseguia entender algumas palavras, mas dava para saber quais eram eles.
Pecados de menina-moça. Provavelmente só pensamentos, talvez um pouco mais. Não
deu para entender. Deve ter recebido, de penitência, algumas ave-marias e
alguns pais-nossos e nada mais. Pecados leves, pecados não capitais. Ela saiu
com cara de anjo, contrita. Agora era a vez de Riana. Contou, pela ordem, os
sete pecados. Na parte da ira, não deixou claro se matou alguém. Só falou que
atirou. O padre que deduzisse, se quisesse. Não quis ou fingiu que não quis.
Era por demais. Muito para uma moça só.
Foi perdoada
mas ganhou uma semana de jejum e abstinência. Mais rosários todos os dias até o
sábado. Domingo próximo, deveria vir até a missa e fazer novos propósitos para
a vida. Recomeçar. E assim fez. Damian não apareceu para não atrapalhar a
recuperação. Assim é que se faz. Existe hora de estar e hora de não estar. Na
sexta, ela repetia as orações, sem nem pensar. Tinha virado tudo automático, um
rezar sem fim. Sábado foi dia de descanso, dia de reflexão. Refletir sobre o
que tinha acontecido, refletir sobre o que ia fazer no futuro. Mais ainda sobre
o que não ia fazer. Coração assentado, alma em penitência, espírito quase
curado. Aquele sonho que tivera, era uma balela, o verdadeiro perdão era aquele
ali, com o padre, ela estava perdoada.
O domingo
chegou. Damian apareceu. Riana explicou que precisava ir à missa e que isso ela
não ia declinar. Não podia. Era uma questão de compromisso lá com o alto.
Recebera o perdão. Damian ponderou que ela estava certa. Mas por que não ia à
igreja na missa da noite? Terminar ou começar – a semana com chave de ouro.
Durante o dia, dominical, iriam à cabana para ela enfrentar seus demônios.
Dizer cara a cara que os enfrentara. Que tinha vencido, que era forte. Sempre
falo que o Damian é habilidoso com as palavras. Não é mesmo? Tinha lógica o que
falava, fazia sentido. Enfrentar seus próprios demônios. Haveria outros? Outros que não são seus? Filosofia vã, conceito barato, isso não
importa. Ela estava forte, podia enfrentar. Sua alma sairia revigorada, o
Damian sabia das coisas, sabia falar as coisas.
Chegaram lá por
volta da hora do almoço. Sobre a mesa da sala, umas frutas. Damian explicou,
nada de carne naquele dia. Uma questão de respeito. Combinava com a contrição.
Fazia sentido aquele Damian. Isso era de se respeitar. Entre as frutas, é
verdade, havia uma maçã. A maçã de Eva? De Adão? Que importa? Isso é história
antiga, nem se sabe se é verdade. Velho Testamento. Velho. Verdade que não se
usa mais.
Sentaram-se. Um beijo delicado na face de Riana. Estava
diferente o Damian. Até parecia também contrito com os pecados de Riana. Pegou
uma fruta e trouxe para ela comer. Entre tantas outras, por que a maçã? Por
quê? Um símbolo? Não queria mostrar
hesitação, não era mulher de símbolos, nem nada. Deu uma mordida. Gozado,
pensou naquilo. Maçã inversa? Maçã do pecado inverso? Da mulher para o homem?
Maçã do perdão? Que nada, não havia pecado em comer uma maçã. Damian
levantou-se de novo. Voltou com um pires. O mesmo pires. Cheio de flores
pintadas. Na porcelana pintadas. No meio, um pó azulado. O que era aquilo, o
que queria o Damian? Era para ela?
Foi uma
confusão na mente. Aquela semana toda de contrição, uma mordida na maçã, era o
que ele queria que ela fizesse. Depois se lembrou. Ele já tinha explicado,
primeiro a confissão, depois o arrependimento, só agora, após tudo isso, aquela
viagem para o azul. Ele já tinha explicado. Não tinha entendido? As coisas
faziam sentido. Muito sentido faziam. Ficar pura por dentro, viajar, ver as
coisas lá de cima, no meio do azul. Depois de tudo, precisava. Depois de tudo,
queria. Se estivesse tudo errado, se fosse um engano, era só confessar de novo.
Os pecados de antes eram muito piores, esse era fácil, se pecado fosse.
O Damian não
falava nada, mas parecia conhecer seus pensamentos. Sem palavras. Ela olhou
para seus olhos fortes e cheirou aquele pó. Não era isso que devia fazer?
Era uma coisa
maravilhosa, ela subindo assim no ar. Sem culpa, sem dor, poderosa. Tudo podia.
Uma sensação nunca antes sentida. Nem sequer imaginada. A Riana, senhora de
tudo, pairando assim no ar. Que coisa gostosa, que coisa boa. Ela, assim,
pairando no ar, senhora de si, pura, sem pecado, tudo podendo.
O Damian fechou
a porta e saiu. Ela percebeu e não entendeu. Também para quê? Ela não precisava
mais do Demian, ela era a Riana, a senhora do ar, que tudo podia.
A segunda feira
chegou, como chegam todas as segundas. Cheia de realidade e de realismo. Um
telefonema e a polícia vem. Uma mulher, de nome Riana, havia morrido de
overdose. Coisa pesada. Havia engasgado com o próprio vômito. Sem antecedentes.
Sozinha. Sem impressões digitais. A família foi avisada, o enterro marcado.
Não se ouviu
mais falar do Damian. Nem sei mesmo se ele existe, se alguma vez existiu.
Talvez o tempo todo fosse só a Riana e o resto, pura imaginação. Talvez
imaginação deste que lhes escreve. Coisa de narrador. Que precisa dar explicação.
Seria melhor assim, se fosse pura imaginação. O Damian existe ou não? Que importa? A Riana está morta agora. Não
foi à missa. Não pode mais fazer confissão. Existe um oitavo pecado capital? Se
existe, é esse mesmo, esse de voar, irresponsavelmente pelo ar. O pecado que
vem servido no pires. Cheio de flores pintadas, flores pintadas na cerâmica. De
uma cor azul pálida, misturada com as flores... Riana morreu, Riana está morta
agora. Foi seu último pecado, o oitavo. O oitavo e capital pecado, esse de
voar...
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