Saturday, May 31, 2014

Houve uma época em que nosso país era muito feliz



Houve uma época em que nosso país era muito feliz
( ou “A copa e as covas de Perus)

Houve uma época em que nosso país era muito, muito, feliz. Havia tão poucas notícias ruins, que os jornais nem mais tinham matéria para publicar. Você sabe como é, só desgraça é que vende jornal. Para preencher espaço tão precioso de um noticiário, um deles começou a publicar receitas de bolos e doces. Como não tinham muita prática nessa nova empreitada, às vezes elas saíam incompletas, com defeitos. Outro jornal, mais dedicado à cultura, lançou poemas de gente famosa, e principalmente versos de “Os Lusíadas”. Isso era para o povo ficar cada vez mais culto. Acho que deviam ser mais organizados, porém. De repente, interrompiam a narrativa, e isso poderia prejudicar seu sentido. Valeu a tentativa , no entanto.
Além de não haver notícias ruins, havia um monte de boas. Um progresso sem igual. Estradas, telefonia, tecnologia. Parecia até os Estados Unidos. Era difícil ver alguém  insatisfeito! Era mesmo um governo bom, esse dos militares.
Você sabe como são as pessoas. Sempre arrumam um jeito de reclamar. Começaram a falar que esse progresso todo ia custar uma fortuna e que, mais tarde, teríamos de pagar. Décadas e décadas de pobreza e fome para cumprir os compromissos financeiros e seus juros. Mas não é assim que se constroem as coisas? Não dá mesmo para satisfazer a essa gente toda. Como se isso não bastasse, até uns coveiros do novo cemitério de Perus estavam insatisfeitos com seu trabalho. Era um excesso. Corpo vindo de todo lado. Para acalmar a situação, disseram a eles que não precisavam se preocupar. Estava dispensada a identificação. Além disso, poderiam colocar todos numa só cova. Ainda bem que esse pessoal tinha visão: era preciso facilitar o jeito de operar, pois isso, sim, fazia parte do progresso.
Quando o contentamento e a satisfação eram completos, ainda assim, apareceram uns chatos. Diziam que ouviam gritos. Parecia gente sofrendo. Não sabiam de onde vinham aqueles sons horripilantes. De casas fechadas, dos porões? Podia ser, pois os ruídos eram abafados. Mas, acho eu, eles estavam apenas ouvindo demais.
Ainda bem que, com o tempo, esse choro pungente foi passando. A gente tinha quase esquecido. Nos últimos tempos, porém, não sei por quê, existem pessoas que estão falando deles novamente. Talvez reconheceram as vozes, talvez eles mesmos sejam os que gritaram de dor, um dia. Como eu disse, existe gente que reclama de tudo.

Justo agora que tudo ia tão bem, a gente quase ganhando a copa e tudo mais...


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1 comment:

  1. Amado mestre houve uma época onde eu era aluna de sua esposa, onde eu não sabia qual seria o presídio que iria visitar naquela semana, andei por vários e sei que isso salvou a vida de meu pai. Houve uma época em que ele foi dado como desaparecido e todos os dias ao voltar de meu serviço paorei por todos ssava pelo cemitério de Perús e me perguntava - ele estaria aqui - um dia tomei coragem fui lá durante o dia levei uma rosa e uma vela, chorei por mim e por todos os meus "tios" de paradeiro desconhecido. Mas esse tempo de treva me deu um tiquinho de luz...a escola....os poemas de Camões... " O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre..." Assim sobrevi até um dia encontrar meu pai um intelectual, um poeta moranso sob um viaduto, sem memória, sem referência.... Ao recobrar um pouco de sua memória ele me fez um grande elogio, disse que eu era inteligente, amou ver os livros em minha estante, isso tudo eu devo a vocês meus professores, as luzes cintilantes que ofuscaram a treva onde eu vivia. Parabéns. Silvana Ramalho.

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